As Mil e Uma Noites
Scheherazade, Edouard Richter
A vida não tem a mínima graça. Não me venham cantar a virtude da verdade; não me façam hinos à prosaica realidade. A vida, a prosaica realidade, está todos os dias nos jornais e faz primeiras páginas infames. Torce-se o jornal e escorre sangue.
Quem paga bem é a ficção; só a mentira tem imaginação para proclamar o sublime. Viajei por montes e planícies, fui aos bares mais escusos das mais escuras noites, e nada, nem um cavaleiro andante. Don Quixote e Sancho Pança sim, proclamam incansáveis, nas intermináveis páginas de um livro, em múltiplas e intraduzíveis línguas, a superioridade de um idealismo que resiste ao rídiculo.
Os verdadeiros heróis são de papel. Ninguém, nenhuma polícia, nem mesmo o cortejo de um milhão de detectives de carne e osso, se aproximará, debilmente que seja, da rigorosa capacidade dedutiva do britânico Sherlock Holmes ou de Hercule Poirot, de imprestável nacionalidade belga.
Dizem-me que há seres dúplices, manéis de dia, marias à noite, mas na vida topam-se à légua. Só uma imaginação poética e em transe mediúnico teria criado o corpo desdobrável e prodigioso que é, ao mesmo tempo, Dr. Jekyl e Mr. Hyde. Querem provas: leiam o livro, vejam os filmes.
E digo-vos: mesmo nos momentos mais trágicos, quando só a sobrevivência conta, a honesta e nostálgica ficção canta mais alto. Durante a II Grande Guerra, de um lado e do outro da trincheira, a mesma fabulosa mulher, Lili Marleen, assombrava os corações dos soldados alemães e dos soldados aliados. Era só um nome, duas palavras a fechar uma estrofe. Nunca ninguém a viu, essa rapariga debaixo de um desmaiado candeeiro, mas todos, durante aquela guerra, a cantaram e perdidamente a amaram.
Não há um recanto da nossa vida, em que a ficção não se intrometa e, despudorada, triunfe. O enigmático Édipo, mete-se entre o filho que somos e os pais que temos. Lolita, a decotada ninfa, atormenta-nos a maturidade. Othello vem todas as noites instilar um obtuso ciúme na almofada em que afundamos as nossas insónias.
Donde vem este exército de fantasmas, esta legião de incorpóreas aventuras? Às vezes acredito que cada um de nós é como um rei de mil e uma noites a quem, de madrugada em madrugada, uma Scheherazade surpreende com lendas e histórias, com poemas e canções. Com tão boa ficção, que préstimo pode ter a vida?
Crónica de empréstimo, toda copiada daqui.
2 comentários:
Manuel,
Acho que está a ser muito injusto com a realidade. Porventura algum Shakespeare, algum Sófocles ou algum Molière seria capaz de nos presentear com a picaresca imprevisibilidade de um Santana, com o a rocambolesca propensão para o disparate de um Menezes, com a mítica capacidade de transformação de um Paulo Portas ou com o grotesco moralismo de um Louçã? Convenhamos que perante as tão deliciosas e inimagináveis criaturas é a própria Scheherazade que ruboresce. Alguém precisa do Globe Theatre se assinar o Canal Parlamento?
Pedro,
aceita o convite para escrever o guião "gore" de um filme de "basic terror"? Ao pé desta sua sinopse, o "Saw" e o "Hostel" são uns meninos de coro...
Enviar um comentário