sábado, 5 de janeiro de 2008

Out of Africa

Por causa do “É Dreda Ser Angolano” e passando, a despropósito ou talvez não, da música aos motores, o cancelamento do Lisboa-Dakar parece-me catastrófico. Não pela competição, mas por África. O assassinato dos quatro franceses na Mauritânia, o medo (com toda a probabilidade justificado) que agora esta decisão revela, empurram África para fora duma relação convivial e entre iguais com a Europa. Não poderia, nesse sentido, haver mais cruel desmentido para a recente cimeira de Lisboa.
A África fica mais longe (cada vez mais longe?). Parece quase fatal a hipótese de violência súbita e arbitrária, de que o Quénia é, agora, outro desolador exemplo. A África fica só e mais isolada. Para os europeus é ir e vir, entre política e negócios. Para os africanos fica reservada a amargura paroquial das guerras étnicas (ou serão racistas, como a dos Luo contra Kikuyus ?), e do infindável cortejo de misérias a que a corrupção ou inépcia dos seus governantes os condenam.

3 comentários:

Sofia Galvão disse...

A escassas semanas da cimeira Europa-África, o episódio tem um alcance trágico. Não posso concordar mais.
Mas pergunto-me se não haveria aqui alguma inevitabilidade? O que verdadeiramente se fundou (ou pretendeu fundar) em Lisboa?
O convívio aberto e paritário entre iguais é pura efabulação. Uma daquelas premissas que diplomaticamente se assumem com total consciência da sua inverdade.
Politicamente, o princípio pode afirmar-se. Mas como desígnio, como meta. Como pressuposto de facto, dá asneira certa. E, sobretudo, o que é pior, muito pior, evidencia a falta de vontade de fazer esse caminho. Falta de vontade europeia, designadamente.
África precisa de ajuda. Precisa, sobretudo, de ajuda. E a Europa tem que decidir se quer projectar essa ajuda para um processo de construção de estruturas económicas e sociais capazes de suportar uma aproximação tendencial dos níveis de desenvolvimento dos dois continentes, ou se não quer. Ou seja, portanto, se quer ou não a proclamada paridade.
É que, se quiser, terá de empenhar-se numa política franca - e, por isso, difícil - que supere traumatismos históricos e clivagens culturais, consolide a paz e promova o amadurecimento de sociedades necessariamente diversas dos seus quadros e matrizes.
Mas, se não quiser, basta que continue a organizar cimeiras para encher o olho dos incautos e garantir uma relegitimada perenidade aos grandes destes dois mundos. Basta que continue a servir-se de África, tirando o máximo e dando o mínimo, numa gestão utilitária e pragmática das necessidades e dos interesses. Continuaremos a ter guerra, doença, pobreza a par de uma chocante concentração de riqueza, de negócios esconsos e de redes de influência impenetráveis mantidas em mãos seguras. Endemicamente.
Mas, enfim, quem sabe de África é o Manuel S. Fonseca. O meu desabafo é apenas isso: um desabafo contra a hipocrisia.

Anónimo disse...

O Paris-Dakar é coisa "convivial"?!! eu diria que é coisa "colonial". Se acabar de vez, ainda bem. Será pelas más razões, mas ainda bem que acaba o despautério no meio da miséria.
n

Manuel S. Fonseca disse...

Sofia, a sua leitura muito mais política do que a que eu pretendia fazer, é justa e "acurate". Entendo é que, a principal ajuda que África pode receber vem dos próprios africanos, a começar pela capacidade de reconhecer erros e defeitos próprios.
Ao meu caro anónimo só quero dizer que o "Dakar" não me parece coisa colonial (para esse peditório já dei); parece-me mais coisa global. Creia que não é pelo que chama "despautério" ser agora abortado que a miséria acaba. A miséria fica só mais esquecida e menos visível. Acrescento, "just for the record", que para mim o estatuto de um Fiat 600 ou de um Porsche andam ela por ela, o que lhe dá uma ideia do apreço que tenho pela coisa em si. Sintetizando: o cancelamento do Dakar foi um triunfo da Al Qaeda; alguma boa consciência europeia alegra-se por não ter já de suportar o contraste gritante das máquinas milionárias com a pobreza extrema dos trópicos; a África continua pobre (talvez um pouco mais pobre) e mais fechada sobre si mesma.