Do Socialismo Capitalista
«O Estado é aquela grande ficção social através da qual cada um tenta viver à custa de todos os outros»
Frédéric Bastiat
Frédéric Bastiat
Thomas Weinberger - «Zona 30», Munique, 2004
Ao Manuel S. Fonseca o conceito de Socialismo Capitalista pareceu-lhe, ou parece-lhe, demasiado abstruso e paradoxal para o poder aceitar sem mais. Ajudado não tendo sido pelos dicionários, ocorreu-lhe até a terrível ideia de regressar a Derrida, imagine-se!, na busca de mais luz. Talvez desse um bom «post», talvez até com um sugestivo e muito cinéfilo título de «Desconstruindo o Gonçalo» mas, em boa verdade, duvido que a maçada valesse a pena. Não o «post», por certo imaginoso e, como sempre, em tão singular quanto superior estilo, mas a releitura de Derrida, essa seria pena demasiado pesada que, neste particular, nada parece justificar.
Em vez do pobre Derrida, prefiro evocar o velho Frédéric Bastiat, uma das poucas verdadeiras almas intrinsecamente liberais vindas à face da terra, sobretudo nos últimos 250 anos. Uma figura que os Economistas de hoje, como em geral toda a actual Academia, menosprezam e desprezam quando, pura e simplesmente, apenas não ignoram, tanto pelo seu estreme liberalismo como pelo facto de não ser, como os de hoje, um simples economista quantitativo mas, acima de tudo, conceptual, i.e., alguém que soube pensar a economia como a economia deve ser pensada.
Assim, parafraseando Bastiat, poderemos afirmar, numa primeira tentativa de definição de Socialismo Capitalista, constituir-se este exactamente como aquele sistema económico em que cada um procura viver o melhor possível à custa de todos os outros, em activa conivência com o Estado.
Para o Manuel S. Fonseca, a dificuldade de aceitar uma expressão como a de «Socialismo Capitalista» decorre, em primeira instância, do que entendo como constituindo o seu carácter paradoxal, embora, em boa verdade, o paradoxo não seja senão aparente, como tentaremos, em breves traços, explicitar.
Em boa verdade, Socialismo e Capitalismo, ao contrário do que vulgarmente se julga, não são termos contraditórios mas, quase se diria, complementares. O Capitalismo não se opõe ao Socialismo, o que se opõe ao Socialismo, enquanto doutrina política, é o Liberalismo.
O Liberalismo tendo como princípio a Liberdade, como Primado o Individualismo, consubstancializando-se na Propriedade e afirmando-se pelo Mercado, segundo a Lei da Procura e da Oferta, opõe-se, de facto, ao Socialismo que tem como princípio a Justiça, como primado o Colectivismo, consubtancializando-no numa mítica igualdade e afirmando-se de acordo com um Planeamento Global Centralizado.
O Capitalismo, por seu turno, não chega a constituir-se como uma doutrina política mas tão só como uma praxis económica. Aqui valerá inclusive a pena lembrar o quanto o termo deve a Marx e à sua obra «O Capital», transformando a primeira linha do Balanço, a Cabeça do Balanço, onde se inscrevem os meios e bens patrimoniais disponíveis à realização de um determinado empreendimento, no ponto crucial de um Sistema Económico.
Entretanto, fosse pelo prestígio alcançado pelo marxismo, sobretudo após 1917, prestígio que ainda hoje perdura em formas mais subtis e nem sempre conscientes, mas obcecante, ficou e persiste o mito de uma suposta oposição radical entre marxismo ou, mais genericamente, Socialismo e Capitalismo que, todavia, mais não é senão uma mera ilusão e um grave erro de perspectiva.
Na verdade, tanto o marxismo como genericamente o Socialismo e o Capitalismo, têm um fundo comum que a todos irmana como filhos dilectos do industrialismo então nascente. Apenas os separou o entendimento sobre a posse dos meios de produção, propugnando os primeiros pela posse colectiva, em nome do Estado, admitindo e defendendo os segundos a sua manutenção em mãos particulares. No mais, porém, uma perfeita harmonia de conceitos e interesses, ou seja:
1) uma mesma negação do indivíduo em detrimento do colectivo (a «massa», em termos marxistas), englobando todos os seres humanos num mesmo todo abstracto, apto a receber todas as formas adequadas à plena realização das potencialidades de contínuo acréscimo de produtividade e riqueza, supostas na nascente indústria.
2) um mesmo conceito de liberdade, limitado e reduzido à posse de riqueza que, conjugado com a anterior visão das possibilidades da nascente indústria libertar o Homem do reino da necessidade, conduziu igualmente à formulação de um mesmo preceito de legítima redistribuição dessa mesma riqueza de modo a todos libertar do ciclo infernal da necessidade e a todos conceder um mesmo abstracto grau de felicidade;
3) pelo anteriormente exposto, fácil é agora compreender também como o marxismo, Socialismo e Capitalismo, se juntam ainda numa mesma completa e absoluta negação da Propriedade, reduzindo-a a um mero acto de posse (para bem compreender o que verdadeiramente se deve entender pelo conceito de Propriedade, importa, com certeza, ler a notável exposição de Orlando Vitorino na «Exaltação da Filosofia Derrotada»);
4) por fim e consequentemente, a marxistas, socialistas e capitalistas, tanto repugna o Mercado quanto valorizado é o Planeamento Centralizado e o Monopólio.
Neste enquadramento, melhor se compreende já o actual e muito feliz conúbio actual entre o actual Estado de cariz Socialista e a actual Plutocracia. Falida a via estreme do Comunismo, também dito Capitalismo de Estado, i.e., a fase das nacionalizações e da posse integral de todos «os meios de produção pelo Estado, a via intermédia é esta, a Plutocracia ou o dito Capitalismo servindo o Estado e o Estado, de inegável cariz Socialista, servindo a Plutocracia, irmanados ambos numa mesma consideração ou desconsideração de todos, dos cidadãos, entendidos apenas como meio para obtenção de uma mesma finalidade, ou seja, de um contínuo acréscimo riqueza que, uma vez redistribuída por todos, de acordo com os preceitos estatuídos pelo próprio Estado, todos fará igualmente livres e felizes. E perante tal alto desígnio, nunca o Estado fará demais. Pelo contrário, sempre se dirá que não faz o suficiente.
Entretanto, claro, múltiplas outras consequências decorrem desta visão, a começar pelo Direito que, deixando de ter como finalidade a realização da liberdade, passa a servir instrumento de legitimação de uma crescente e insuportável servidão. Basta ver, para tanto, o desprezo a que é votada a Filosofia do Direito nos actuais curricula das nossas ditas Universidades. Será mero acaso ou terá funda justificação?
E é neste exacto ponto em que nos encontramos.
Apostila: No mais, creio ter escapado ao Manuel uma subtileza que era também uma piada, ou seja, a referência a «intervenção preemptiva». Mas, seja como for, não me parece que o caso BCP mereça mais comentário. Pela minha parte, pelo menos, já disse quanto tinha a dizer e mais não digo. Claro, ainda aí virá o caso Cadilhe mas será que fará alguma diferença em relação ao discutido? Não creio.
De qualquer modo, para terminar como começado, talvez valha a pena ficarmos ainda com uma citação mais de Frédéric Bastiat, para meditação: «Le gouvernement n’agit que par l’intervention de la force, donc son action n’est legitime que lá oú l’intervention de la force est elle-même legitime».
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