quarta-feira, 28 de novembro de 2007

I. Nostalgia. Tarkovski


Desde há muitos anos que me falavam de Tarkovski. Em modo laudatório. Mas o que os outros incensam sempre me pareceu um problema deles. Vi há muitos anos “A infância de Ivan”, achei-o uma obra-prima, mas ignorava que fosse de Tarkovski. Por isso o primeiro filme dele que vi, com pleno conhecimento de causa em relação a quem fosse o autor, foi “Andrei Rubliev”, não há tantos anos atrás quanto isso.

Não é grave. Tenho vindo a ver vários filmes dele e até agora nenhum deles me arrebatou tanta como “Rubliev”. O seu ambiente de Rússia eterna, muito ao jeito de Eisenstein, que Tarkovski parece não gostar de citar, no entanto, é o que mais me diz. Porque razão profunda, deixo para outras núpcias.

Confesso que duas leituras de Nostalgia me desagradam. Uma primeira e uma terceira. A primeira, por recusar espaço à narrativa. Espaço que em si não é essencial numa obra de arte, mas começa a enfadar quando se trata de ideologia. Na mesma esteira me agastam um pouco os diálogos de Tonino Guerra, em que problemas fundamentais são colocados, para ficarem sem resposta, em diálogos com linhas quebradas que por vezes pecam por uma ênfase desproporcionada e por isso algo pretensiosa. Numa terceira leitura, pela imensa tristeza de um mundo que se mostra incapaz de enunciar um discurso coerente sobre a grandeza, e em que a enunciação honesta se quer sempre fragmentada.

Tarkovski é russo. Gostava de o lembrar. Logo, europeu. Mas ainda tem de ser lembrado este facto. Hoje em dia em que o analfabeto afirma ser europeu o altaico é bom que nos lembremos de que a Rússia é um país europeu e não qualquer um. O maior de todos em extensão, população e uma das maiores culturas europeias.

É nessa segunda leitura que me fico. A da grandeza da Rússia enquanto imensa cultura europeia. Vejamos em quê.

Três personagens principais. Um poeta russo, uma guia italiana, um louco da aldeia.

A guia italiana para começar. Descrente, assistindo ao culto da Madonna com ar de aparente interesse turístico, mas colocando questões com ansiedade mal disfarçada pelo formulário modernista. Um culto de Nossa Senhora que parece quase pagão, de Ísis, em que o espaço para o carnal, o culto da Mãe quase nos repugnam de tão sensual que é. Ironia, paródia? De todo. O filme é dedicado à memória da mãe do realizador. É sério o que se diz. O que se mostra. Uma pintura da Madonna do Quatrocento é central do filme.

A guia italiana é tudo o contrário disto. Céptica, desesperada pela fidelidade do poeta russo em relação à mulher. Fidelidade. A mesma raiz de fé. Desespera-a que ele seja guiado por valores de absoluto, em suma que procure a lucidez.

Onde se refugia ela? Pretende acabar vivendo com um outro homem, que preenche os seus requisitos oficiais do que deve ser um homem adequado. Afinal o poeta russo é mal vestido, nada faz para ser sensual, para ser tentador. E ela sente-se profundamente tentada por ele. Paradoxo banal como mais não pode haver. Mais uma Salomé atrás de um João Baptista. Onde pretende ela acabar a sua história? Indo para a Índia com o seu novo homem, à procura de espiritualidades novas. Pretensão séria? Nem pensar. Porque ela acaba pronunciando a mais trivial das frases ao seu novo homem: diz que vai comprar tabaco. E este novo homem sabe que ela não volta. É o que valem as procuras de espiritualidades frescas, de uso fácil. Acaba-se saindo de cena sem nada produzir.

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