O lugar da democracia (1)
A vida política portuguesa parece viver num impasse depressivo. Os partidos parecem esgotados. A maior parte da nova geração de políticos, até aos 55 anos, que singraram no pós 25 de Abril, são figuras públicas geradas apenas pela sua actividade partidária. Não se lhes conhece obra própria, um destino individual e, por isso, a sua disponibilidade para a política não tem o mérito de uma dedicação a uma causa com prejuízo de carreiras pessoais porque traduz apenas o seu apego àquilo de que dependem para sobreviver e para terem o reconhecimento dos outros.
Os espaços vazios são ocupados, quem deles se apropria fortifica-os e, assim, impede a sua apropriação por outros. Na política portuguesa, os partidos ocuparam o lugar da democracia e são a democracia. A democracia que temos. E a democracia que temos não se regenera se permanecer uma terra ocupada, em que ninguém, fora dos partidos políticos, nela possa entrar e nela possa participar. A dificuldade é da entrada nesse lugar ocupado.
A regeneração tem dois caminhos: regenerar os partidos ou formar novos partidos que se proponham participar na vida da democracia. O primeiro cheira a subversão e o segundo a revolução. O primeiro cheira a subversão porque supõe que quem entra nos partidos está a reconhecê-los como inevitáveis e vai utilizá-los para os fazer perdurar no regime de ocupação que eles defendem. O segundo, cheira a revolução porque supõe uma nova realidade no sistema de representação democrático libertando o espaço ocupado e reorganizando-o.
Os antídotos para qualquer um dos caminhos está implicitamente prescrito. Os partidos são estruturas hierarquicamente dirigidas onde a evolução de um novo político é acompanhada a par e passo e envolvida com compromissos e comprometimentos com a hierarquia tornando difícil alguém chegar ao topo com suficiente liberdade e independência para mudar tudo, ou simplesmente, alguma coisa. Esse elemento terá de passar um crivo dentro do partido e, depois, o crivo dos media com quem os partidos estão tacitamente sintonizados. Fora dos partidos e tirando iniciativas para-partidárias de grupos de cidadãos para causas muito específicas ou em condições muito específicas onde até agora só dissidentes partidários de vulto conseguiram afirmar-se, fora dos partidos, dizia, toda e qualquer afirmação de um grupo alternativo tem de enfrentar uma classe política que detém todos os poderes do Estado e que tem influência nos media e nos tribunais, e tem de enfrentar os media e o desfile de fazedores de opinião que existem para dizer tudo e o seu contrário com especialistas na sugestão, na deturpação, no gozo e na calúnia.
A saturação e a necessidade de mudança é resignadamente prorrogada pela sensação de que a democracia é o que estamos vivendo e a democracia não pode ser posta em causa, leia-se: os partidos. Vemos até, com espanto, colunistas sugerir que o povo não vota porque é mal agradecido e talvez devesse ser obrigado a votar para sustentar ou plebiscitar o regime da democracia que temos, a dos partidos representativos. Faz lembrar a história do sargento que trouxe um conjunto de voluntários para uma determinada acção e o general, olhando para eles, disse ao sargento: Obrigado, agora desate-os. Induz-se a ideia de que vivemos no regime final, perfeito e a nossa obrigação é sermos felizes e se possível desatados.
Mas não é. E não se percebe como poderá ser. Talvez não seja para ser, pelo menos segundo os paradigmas contemporâneos da pós-história. Já ouvi na televisão um ministro dizer, a propósito duma luta de gangs numa discoteca, que em democracia isso não deveria ter lugar. A democracia, o tal estado paradisíaco e feliz não pode, não deve, coexistir com disputas nem com confrontos violentos porque sendo um estado de perfeição não há razão nenhuma para haver mal e o mal é o mal que os homens fazem uns aos outros. Ridícula presunção. O estado perene em que, então, vivemos e a que chegámos, é garantido pelos guardiões da democracia: os partidos políticos que existem. E, dentro dos partidos políticos que existem, pelos políticos no activo que ocupam os lugares das estruturas do Estado, alternadamente, em alianças, parcerias ou coligações, com trocas e compensações, favores e reconhecimentos. Poderemos esperar outra geração de políticos? Como poderão conquistar esse espaço ocupado?
De insucesso em insucesso, espera-se agora alguma coisa dos empresários. Como se a causa pública fosse uma simples translação da causa empresarial e governar empresas fosse o mesmo que governar povos. Depois de militares e de profissionais liberais, depois de políticos amadores tornados profissionais pelas juventudes partidárias germinados em anos de militâncias nos partidos, depois de políticos voluntaristas self-made, tem-se nos empresários a oportunidade que se segue e que antecederá a profissionalização universitária do político. A profissionalização do político será o assalto final na ocupação da democracia por uma classe legitimada pelo curso superior e o doutoramento em político. A população aplaudirá, resignada. Ou anestesiada. O triangulo universidade, classe política e comunicação social é um triunvirato inexpugnável.
E, então, o que será feito da política, antiga arte de governar os povos e antiga via de procura da liberdade, da justiça e da verdade no destino dos povos?
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