O lugar da democracia (2)
O que caracteriza algumas estruturas democráticas na Europa, apesar da permanência dos partidos ou da classe política no aparelho do Estado e nas grandes empresas do Estado, é uma grande circulação de políticos por cargos nos sucessivos Governos, na Assembleia da República, na Presidência da República, nas Autarquias ou nas Empresas Públicas. Ainda que se diga que o Estado paga mal, há muitas formas de receber indirectamente depois de exercer os tais cargos mal remunerados.
A percepção de que há um tempo limitado de passagem pelo poder leva a tentar resolver a vida, sobretudo, por quem não tem um destino pessoal, nem um caminho próprio; leva a que seja inevitável aproveitar a oportunidade que não se repetirá. Muitos advogados, engenheiros e médicos beneficiaram com a promoção que a visibilidade política confere. Mas continuaram, muitos deles a sua vida de engenheiros, advogados e médicos. A boleia foi útil mas, em muitos casos, não veio alterar as vidas que se tinham desenhado. Actualmente, tem-se a sensação que é uma tábua de salvação. Esta situação leva a que o lugar da democracia fique ainda mais ocupado, diria, mais fortificado. A ideia de causa pública é subvertida pela necessidade da causa própria.
O arrastar resignado destas constatações leva a que tudo se torne natural e, pasme-se, compreensível. O povo não se indigna. Ninguém se importa. E porquê? Primeiro, porque pensa que em situação equivalente faria o mesmo, depois, porque há um clima de anestesia geral em que as pessoas já nem percebem quanto a sua resignação lhes custa, por exemplo, os impostos, que entre os directos e os indirectos priva cada um de mais de 60% do seu salário. Não percebem que financiam o Estado perdendo capacidade individual de investir ou de poupar. E, se alguém lhes disser, encolhem os ombros porque pensam que é preciso, que é assim. Talvez, também, para além do estado de anestesia geral, haja outras razões. Uma delas é a falta de consciência de que um povo tem uma existência colectiva com afinidades comuns dirigidas ao interesse de todos. A melhor organização dessa existência colectiva é a que der melhores frutos a cada um. O que temos a sensação de ver na política é também o que temos a sensação de ver noutros ambientes. Os exemplos que vêm de cima arrastam e muita gente demite-se da sua iniciativa e da condução do seu destino a troco de comodidades: estratégias de sobrevivência. Mas o país perde com isso.
Ignora-se hoje em dia que há nos povos um universo de identidade sem o qual o indivíduo se perde irremediavelmente e com ele toda uma concepção do mundo que o faz ser indivíduo de algum todo. Perdida a noção de todo perde-se a noção de indivíduo. Esse universo, chamemos-lhe Pátria, é o limite que garante a comunhão entre os homens e a livre expressão da sua individualidade. Vive da comunhão de interesses mas também de afinidades e de relações de confiança que partem de uma mesma mundividência: uma cultura, uma moral, um direito, uma memória comum, uma identidade própria em que cada um se espelha a partir das suas diferenças. Contemporaneamente, perdeu-se esse universo, perdeu-se esse céu, o qual foi substituído por uma miragem que já se chamou internacionalismo e hoje se chama globalização. O que se perdeu foi a dimensão relacional dos homens. Agora nada os liga senão os interesses e o seu egoísmo.
É esta nova realidade que torna as pessoas indiferentes, é esta nova realidade que promove organizações de solidariedade para tudo e mais alguma coisa na tentativa de impor um discurso que obrigue os homens a um mínimo olhar para os outros. Nada imana da comunidade, tudo é imposição. E é perante esta indiferença geral que qualquer luta política é hoje em dia vista com desconfiança e facilmente anulada. No internacionalismo apátrida não há lugar para heróis. São até suspeitos.
A perda de poder por parte dos indivíduos numa democracia é uma subversão da própria democracia. A perda de capacidade económica é a perda da capacidade de investir, conduz à demissão e à passividade. Passivos, os indivíduos são joguetes de quem detém o poder. Cabe, pois, a quem disso tiver consciência, lutar contra a anestesia geral, contra a morte do indivíduo que é a morte da liberdade, contra o pensamento único que conveniências cómodas estimulam para gerar o condicionamento mental. É uma luta para dar lugar à democracia.
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