domingo, 27 de maio de 2007

Pasmos

A mediocridade não recomenda a citação. Gosto do critério. É claro, directo, justo, linear. Mais do que isso, é um critério rico em derivações. Porque a mediocridade não recomenda a detenção, a reflexão ou, sequer, a atenção. Dada a finitude do tempo disponível, o melhor é mesmo concentrarmo-nos no que vale a pena, no que acrescenta, no que ensina e faz pensar.
Mas, confesso, a assunção do princípio surge a propósito da inevitabilidade de o pôr em crise. Não de modo inconsciente – e muito menos gratuito –, mas por razões de concordância prática, estando em causa Boaventura Sousa Santos e o absoluto pasmo que justifica. Aliás, sempre surpreendente na capacidade de se ultrapassar – mesmo quando já não se imagina a possibilidade de ir mais longe, eis que se transcende ainda e sempre.
Para que se entenda, aludo ao artigo que o dito assinou na VISÃO da passada 5.ª feira, dia 24 de Maio de 2007. Artigo cuja leitura não posso aconselhar senão em benefício do pleno entendimento da minha estupefacção.
O título prometia: socialismo do séc.XXI. Mas não se suspeitaria quanto…
Em suma, ficámos a saber que devemos o desígnio a Hugo Chávez. Nas palavras do próprio BSS, desmentindo o fim da história, proclamado pelo pensamento político conservador (sic.), «(…) em 2005, o Presidente da Venezuela colocou na agenda política o objectivo de construir ‘o socialismo do século XXI». A esperança está, pois, em Chávez!!! Com ele – e, também, com Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador) (sic.) –, o socialismo refunda-se para não repetir erros do passado e abre-se a um «debate profundo» capaz de tornar «credível a vontade de evitá-los» (sic.).
Vaticinando, BSS assume que, em vez de um socialismo, teremos «socialismos do séc.XXI». E remata, eloquente: «terão em comum reconhecerem-se na definição de socialismo como democracia sem fim» (sic.)!
Com toda a franqueza, se não lesse não acreditava. E pasmo! Pasmo absolutamente. Pasmo irreprimivelmente. Porque o texto não é apenas o habitual chorrilho de chavões caro a esta esquerda popular. Se fosse, seria mais um – entediante e anacrónico como todos, mas honesto na sua falta de perspectiva.
Porém, o elogio de Hugo Chávez, incensado como arauto do novo socialismo, traduz o reconhecimento do substracto basista, demagógico, autoritário e populista da esquerda doutrinada por BSS. Espantosamente, revelando a medida da sua esquizofrenia – e é melhor pôr as coisas em termos patológicos, porque a hipótese da mera distracção remeteria para a desonestidade pura –, ainda fala em democracia (felizmente, esclarecendo que é uma democracia sem fim, o que sossega, tratando-se de alguém que manifestamente não lhe conhece os princípios ou os meios…)!
É, aliás, curioso – ou talvez não – que BSS se tenha lembrado de produzir tal prosa na exacta semana em que a Venezuela e o Mundo – maxime a Europa, através do Parlamento Europeu – se insurgiram contra o encerramento da Rádio Caracas TV, estação privada de grande audiência que emitia há 53 anos, mas que agora terá sido considerada inconveniente pelo poder.
Afinal, o anúncio do novo socialismo e dos seus émulos não se compadece com minudências. E o que são as liberdades, os direitos fundamentais, o pluralismo, o desenvolvimento económico e a paz social comparados com a construção da democracia popular de BSS?!
Felizmente, o novo socialismo e a democracia sem fim não são ideias que me exaltem. Mas, apesar disso, espero que a esquerda do século XXI possa ter, entre nós, vozes mais sérias e consequentes.
Nesse sentido, desejo ardentemente que Miguel Portas, Luís Nazaré ou Joana Amaral Dias, por exemplo, tenham lido BSS. Porque, no mínimo, terão ficado tão horrorizados como eu.

6 comentários:

Anónimo disse...

Bom, o jovem deputado do PC (não me lembro agora do nome dele...) disse um dia que «não sabia se a Coreia do Norte não era uma democracia»... Agora o Boaventura já não é propriamente jovem para ter desculpa em tanta calinada. Será que o homem deseja que Sócrates se transforme no primeiro ícone europeu do socialismo XXI?
Pior: será que ele acredita mesmo no que escreveu?
É que não dá grandes saídas: se acredita é doido; se não, ainda o é mais...
Obrigado pela recomendação de leitura.

Anónimo disse...

Ultrapassa de facto tudo aquilo que se possa imaginar. BSS, que é uma pessoa tão viajada e tão internacional, será que publica artigos deste género no Boston Globe ou no New York Review of Books ou na Prospect ou no Le Monde? Aí, sim, seria interessante lê-los. Se calhar quem está menos bem na fotografia é a Visão.

Madalena Lello disse...

A nós que fazemos parte da geração de 60, nasci em 61, já nos preocupa que "Dada a finitude do tempo disponível, o melhor é mesmo concentrarmo-nos no que vale a pena..."partilho consigo.
João L.Ferreira, no post seguinte cita e muito apropriadamente E.Y. "Neste espectáculo, o que irrita é a combinação de níveis tão medíocres com um poder funcional monstruoso".
Infelizmente por vezes precisamos de perder o nosso precioso tempo...e por isso aplaudo o seu texto, que sem complexos de a chamarem de direita, se pasma e insurge com tanta mediocridade socialista.

Anónimo disse...

O artigo, que pelos vistos saiu (também?) na Folha de São Paulo está disponível aqui: http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/182.php
É que convinha de facto ler. O BSS (q me enerva bastante, confesso), não faz aqui essa defesa descarada do Chávez. Insinua, isso sim, que algmas medidas dele se afastam do seu próprio objectivo do tal "socialismo do século XXI", chegando a causar algum "temor (...)de, com isso, estar a propor um regime de partido único de tipo soviético (...) bem demonstrativo de como estão vivas as memórias do passado recente".

Anónimo disse...

Cara Sofia Galvão,

não chego a perceber se da sua parte há má fé, ou má leitura. De qualquer modo, ainda bem que alguém deixou o link para o artigo...

Jorge Buescu disse...

De facto, ainda bem que temos o link para ler o artigo original. É elucidativo.