terça-feira, 22 de maio de 2007

O DIREITO À INDIGNAÇÃO

Já não me lembro como é que a coisa surgiu. Foi talvez no primeiro ano do primeiro governo de Cavaco que uma esquerda filha de boas famílias, angustiada com o facto do seu voto valer só o que então valia o voto de uma peixeira, lançou com pompa e pathos o direito à indignação. Mas talvez tenha sido Mário Soares, pai e mãe de muitas coisas de que somos filhos, a cunhar a expressão. Por razões, note-se, bem mais florentinas do que as convulsivas razões que assistiam àquela radiosa parte da esquerda.
Também eu, hoje, me reclamo, enlouquecido, do direito à indignação: a polícia, a investigação das polícias!
Como é que os especialistas escrevem nos jornais, como é que eles dizem na sua translúcida prosa de analistas? Dizem: é inaceitável que um crime violento, transversal a 4 jurisdições, continue impune, sem que seja dada à comunidade uma ténue ponta de solução! É ultrajante que se acumulem suspeitos que a seguir se largam como uma cobra larga a pele! Que outra coisa é, senão insustentável, a situação de uma polícia incapaz de ligar – uma, uma ligação que seja! - a autêntica panóplia de vestígios que lhe oferecem? E que sistema, que coordenação incompetente, pode permitir que as diferentes polícias envolvidas na mesma investigação não cruzem informações e cheguem, mesmo, a sonegar subrepticiamente pistas decisivas?
De que é que eu estou a falar? DE QUE É QUE EU ESTOU A FALAR? grita-me o leitor do outro lado da rua, temendo aproximar-se da minha apopléctica figura. E eu, not with a bang, but a whisper, digo-lhe: da polícia americana.
Está tudo lavrado num filme chamado Zodíaco. Baseia-se o dito em factos reais: no caso de um serial killer que, até hoje, 40 anos passados, a polícia de San Francisco não resolveu. Burocracia e pistas descuradas, outros erros de investigação, má ligação entre as diferentes polícias envolvidas, ditaram a insolubilidade dos crimes que no mínimo causaram 5 vítimas, no máximo terão provocado 27.
O filme? Tem realização de David Fincher, o que aquece bem menos do que parece. Mais do que um whodunit, é um ensaio sobre a obsessão que assalta três personagens inesperada e surpreendentemente "comunicantes": um jornalista, um polícia e um cartoonista. Nos seus melhores momentos, o filme é um belo trabalho de relojoaria do production designer (Donald Graham Burt) que reconstitui com radical perfeição os locais e os ambientes, com os anos 60 e San Francisco a brilharem gloriosamente. De ressuscitar um morto. E é verdade: Donovan levanta-se do fundo dos tempos e canta melhor do que nunca o The Hurdy Gurdy Man.

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