segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O grande sonho crítico

 

É bem conhecido o lugar-comum de Kant dizendo que se libertou do seu sono dogmático lendo a obra de Hume. Vejo isto repetido, e pode ser mera ladainha, ou importante premissa para um raciocínio mais escorado. Cita-se a frase, e esquece-se o seu efeito encantatório.

 

É que uma coisa é dizer que Kant se sentia num sono dogmático, e como ele passava as noites melhor ele saberia, outra coisa são as ilações que o leitor obediente desta observação retira. A primeira: os sonos apenas nascem da dogmática. A segunda: a dogmática conduz forçosamente a sonos.

 

Comecemos pela segunda, que é mais fácil de rebater. Toda a revolução científica foi feita por dogmáticos, no sentido em que foi feita por cristãos convictos e que aderiam muito conscientemente a dogmas. Galileu, Kepler e Pascal aos dogmas católicos e mesmo o anti-trinitário Newton aos dogmas de um Deus criador etc. Dogmáticos, porque o eram também na ontologia. Não eram medíocres como os pós-modernos negadores de toda ontologia.

 

A dogmática conduz a sonos? Cria o torpor? Onde? Onde Bach ou Pergolesi perderam a lucidez é algo que terão de me explicar, que se me escapa.

 

Vamos então à segunda tese, implícita, como tudo o que é nebuloso: os sonos apenas nascem da dogmática. A crítica nunca gera sonos.

 

Primeira fraqueza desta tese: a de acreditar que conseguimos ser plenamente críticos e auto-críticos sem pressupostos implícitos. Puro irrealismo e infantilidade. Ignorância da axiomática. Gente sem literacia matemática.

 

Segunda fraqueza da tese: nem tudo o que se chama a si mesmo de crítico o é. Ser crítico de tudo significa apenas não ter critério e ser destruidor. E mais uma vez esta tese mostra o seu irrealismo. É impossível fazer crítica consistente sem premissas sólidas, indemonstradas, sem as quais não há demonstração.

 

O que acha que a crítica nunca causa o sono vive ele num sono. A prova: vejam-se quantos académicos dizem que não há verdade, e em tribunal dizem que foram acusados por mentirosos, quantos dizem que a ciência europeia é ficção mas vão à urgência médica e não ao marabu.

 

Tartufos? Mentirosos? Adormecidos? Que importa? No mundo de torpor que celebram, entre a vigília e o sono não há fronteiras, como não há fronteiras, e os povos e o que são e os outros nada é. E por isso já vemos os seus argumentos dissolverem-se como uma pasta informe. Dormem? Como o saber? Não muda a sua justiça acordados ou em pesadelo. Putrefacto o seu sentido crítico, gangrenam até na sua respiração. E não digo paz à sua alma, porque afirmam não a ter. Já o tínhamos visto.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

(mais)

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Atlântida e Atenas

 

  

 

 

 

 

 

A história que vem contada as crianças é a de que um sacerdote egípcio teria dito ao ateniense Sólon que:

1)    1) Os gregos seriam sempre crianças;

2)    2) Tinha havido uma grande civilização a Atlântida.

 

Ambas são verdade. O problema são as ilações que os literatos delas retiram:

1)    1) Os gregos são bem mais recentes que os egípcios;

2)    2) A sua memória é mais curta;

3)   3)  Só fora da Grécia houve uma civilização que pôde confrontar-se com a egípcia.

 

O sorriso masoquista da maioria dos leitores aparece aqui. Veja se como a Europa é nova-rica perante as grandes civilizações orientais. Como o Ex Oriente lux faz suspirar os laicos, como se sentem em casa se a civilização vier de terras bíblicas...

 

Mas esta ideia é destinada a vários descalabros.

 

Que, falando da Grécia, se pense na Europa é acto falhado para quem acha que a Europa é bem mais recente e só começa com o cristianismo. Está a confessar que para si a Europa é bem mais antiga do que proclama. Que para lhe dar um estatuto de nova-rica tenha de ir a tempos cristãos, quando ao mesmo tempo diz que o cristianismo não é constitutivo da Europa outro seu fracasso intelectual. Cabeças cheias de contradicções.

 

Que a memória do grego seja mais curta que a egípcia resulta claro do texto. Do próprio Aristóteles há textos de que resulta que os gregos tinham noção de que, poucos séculos antes, tinham vindo de uma época turva, convalescente. Mas memória mais curta não significa História mais curta. Significa apenas que não se tem memória da sua História.

 

O que diz o sacerdote egípcio? Vocês atenienses esqueceram-se da vossa grande História, quando Atenas era poderosa e muito desenvolvida. O vosso problema não é vir de baixo, mas o de se terem esquecido que vêm de cima.

Se os gregos serão eternas crianças, não é por estarem na infância da civilização, mas por se terem esquecido que vieram do contrário.

 

A Atlântida era um grande civilização, mas Atenas também, e houve mesmo uma guerra entre elas.

 

As ilações dos literatos, salvo a da memória curta são, pois, todas falsas. O problema dos gregos não é de terem uma História inglória ou curta mas de se terem esquecido de quão antiga e gloriosa era.

 

O masoquismo europeu fica aqui embaraçado. Porque o mito popular enleva a Atlântida e não dá lugar à grande Atenas? Quer dizer talvez que os gregos actuais, ou seja, os europeus, ainda são eternas crianças e se esquecem de quão antiga e gloriosa a sua História tão ou mais antiga que a egípcia.

 

Aqui tinha razão Chateaubriand quando dizia que se os europeus vissem a sua História como europeus se veriam mais antigos que a China.

 

Aqui pode ter razão quem veja nesta História a marca da queda da civilização do Bronze no fim do século XII a.C., em que, de todas as grandes culturas, a helénica, micénica e cretense, a hitita, a mesopotâmica e a egípcia, só a última resistiu, mesmo que pagando o preço de uma forte decadência.

 

Que os gregos dos séculos V e IV a.C. tivessem memória de um descalabro e negrume histórico é inevitável. Ao contrário dos romanos, que se sabem de longa História e migrantes, os gregos julgam-se de mais curta. A aristocrática Esparta vê se descendente de migrantes dórios, a democrática Atenas vê se nascida da terra autóctone, racicamente pura. Os nazis tinham tanto interesse na democracia ateniense quanto na aristocracia espartana e com boas razões.

 

Lido o texto directamente (Timeu 21E-26E), sem as glosas das glosas que satisfazem os literatos, revela-nos uma História bem diferente. E uma História que choca o transeunte da cultura. Mas se esse europeu se sente confortável em ser chamado de novo-rico, vindo de baixa cultura e sempre inferior a outros, talvez esteja a ser justo. Mas consigo mesmo. Não com os seus parceiros de civilização que gostaria de consigo arrastar na lama.

 

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

 

 

 

Atlântida e Atenas

 

A história que vem contada as crianças é a de que um sacerdote egípcio teria dito ao ateniense Sólon que:

1)    Os gregos seriam sempre crianças;

2)    Tinha havido uma grande civilização a Atlântida.

 

Ambas são verdade. O problema são as ilações que os literatos delas retiram:

1)    Os gregos são bem mais recentes que os egípcios;

2)    A sua memória é mais curta;

3)    Só fora da Grécia houve uma civilização que pôde confrontar-se com a egípcia.

 

O sorriso masoquista da maioria dos leitores aparece aqui. Veja se como a Europa é nova-rica perante as grandes civilizações orientais. Como o Ex Oriente lux faz suspirar os laicos, como se sentem em casa se a civilização vier de terras bíblicas...

 

Mas esta ideia é destinada a vários descalabros.

 

Que, falando da Grécia, se pense na Europa é acto falhado para quem acha que a Europa é bem mais recente e só começa com o cristianismo. Está a confessar que para si a Europa é bem mais antiga do que proclama. Que para lhe dar um estatuto de nova-rica tenha de ir a tempos cristãos, quando ao mesmo tempo diz que o cristianismo não é constitutivo da Europa outro seu fracasso intelectual. Cabeças cheias de contradicções.

 

Que a memória do grego seja mais curta que a egípcia resulta claro do texto. Do próprio Aristóteles há textos de que resulta que os gregos tinham noção de que, poucos séculos antes, tinham vindo de uma época turva, convalescente. Mas memória mais curta não significa História mais curta. Significa apenas que não se tem memória da sua História.

 

O que diz o sacerdote egípcio? Vocês atenienses esqueceram-se da vossa grande História, quando Atenas era poderosa e muito desenvolvida. O vosso problema não é vir de baixo, mas o de se terem esquecido que vêm de cima.

Se os gregos serão eternas crianças, não é por estarem na infância da civilização, mas por se terem esquecido que vieram do contrário.

 

A Atlântida era um grande civilização, mas Atenas também, e houve mesmo uma guerra entre elas.

 

As ilações dos literatos, salvo a da memória curta são, pois, todas falsas. O problema dos gregos não é de terem uma História inglória ou curta mas de se terem esquecido de quão antiga e gloriosa era.

 

O masoquismo europeu fica aqui embaraçado. Porque o mito popular enleva a Atlântida e não dá lugar à grande Atenas? Quer dizer talvez que os gregos actuais, ou seja, os europeus, ainda são eternas crianças e se esquecem de quão antiga e gloriosa a sua História tão ou mais antiga que a egípcia.

 

Aqui tinha razão Chateaubriand quando dizia que se os europeus vissem a sua História como europeus se veriam mais antigos que a China.

 

Aqui pode ter razão quem veja nesta História a marca da queda da civilização do Bronze no fim do século XII a.C., em que, de todas as grandes culturas, a helénica, micénica e cretense, a hitita, a mesopotâmica e a egípcia, só a última resistiu, mesmo que pagando o preço de uma forte decadência.

 

Que os gregos dos séculos V e IV a.C. tivessem memória de um descalabro e negrume histórico é inevitável. Ao contrário dos romanos, que se sabem de longa História e migrantes, os gregos julgam-se de mais curta. A aristocrática Esparta vê se descendente de migrantes dórios, a democrática Atenas vê se nascida da terra autóctone, racicamente pura. Os nazis tinham tanto interesse na democracia ateniense quanto na aristocracia espartana e com boas razões.

 

Lido o texto directamente (Timeu 21E-26E), sem as glosas das glosas que satisfazem os literatos, revela-nos uma História bem diferente. E uma História que choca o transeunte da cultura. Mas se esse europeu se sente confortável em ser chamado de novo-rico, vindo de baixa cultura e sempre inferior a outros, talvez esteja a ser justo. Mas consigo mesmo. Não com os seus parceiros de civilização que gostaria de consigo arrastar na lama.

 

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

(mais)