Contra o pequeno burguês VI
Para o pequeno burguês subir ao poder foi a oportunidade de desprezar livremente o pequeno burguês. E pode fazê-lo em boa consciência porque lhe faltam duas: a de que subiu ao poder, e a de que é a si que está desprezando. Sente que é de justiça ter nojo do que é, porque não percebe que começa a ser nojo exactamente por ser tão pouco e por isso impor ao mundo claudicante ontologia. Dilui o ser, e a partir desse momento pode dizer tudo e o seu contrário, rindo da moral enquanto apenas sabe moralizar. Quando se vem de um mundo latrinário toda a origem parece porca. E não compreende que não são porcas as origens por definição, mas apenas a sua.
Como burguês, é puritano. Não pode ter ao mesmo tempo Deus e
sexo. Mas a pureza para o grande burguês está associada a uma disciplina. Ou o
percurso kantiano, ou o livro de etiqueta e bons modos que supre a deficiente
educação que teve em casa, ou o ordinário da missa. O pequeno, como é sem
esperança, perde a noção de prudência. A pureza acaba por ser entendida
literalmente como «pur», fogo. Tudo tem de acabar numa pira, no limite
funerária, em geral de auto da fé, em que são destruídos livros, apagados
autores, destruídas tradições. Apenas sobram as culturas exóticas, porque só
elas podem ter substância. Não as percebe, e isso salva-as. O mundo de origem
do pequeno burguês, o instituído pela nobreza cristã, tem de desaparecer porque
o insulta, e é o único em que vê substância, é o único em que acredita. Diz-lhe:
vens de baixo e nunca sairás do baixo. Queimando esse mundo aparece-lhe um
outro que também o irá condenar como branco, de origem cristã e reles. Mas as
condenações pretéritas têm mais peso para o pequeno burguês. Homem sem
esperança está preso ao passado. E tudo é melhor que o inferno de ser quem é. O
seu delírio de pirómano vai-o levar a ser queimado por outras culturas. Mas
esse é o seu futuro. E do futuro o pequeno burguês nada tem e nada percebe. Não
se sente perdedor de grande coisa, porque o futuro nunca lhe pertenceu. Por
isso, e sem passado, come desesperadamente o presente.
Os tiranos da época contemporânea eram pequenos burgueses. A
sua base de apoio pequeno burguesa. Não me interessa saber se as ditaduras são
de esquerda ou direita. A grosseria, a crueldade, a falta de liberdade vêm da
mesma cloaca. O Mussolini socialista não foi substituído por um aristocrático
fascista. A origem, o aspecto, os modos são os mesmos. O seu nojo da liberdade
revela-se nas suas teorias, que dizem que somos dominados pela linguagem, pelo
contexto social ou sexual, vítimas tanto quanto destituídos de autonomia. No
fundo, as subtis destrinças entre as várias teorias são de somenos importância.
O pano de fundo é a escravidão em relação a algo. Se a União Soviética, o
mercado, a China, o islão é irrelevante. O pequeno burguês só está em casa numa
prisão. Qual é, só folclore. E se ele se apega ao folclore diz apenas de onde
vem. Quando doutorado perora, vemos-lhe a anca a descair para um vira ou um
corridinho.
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