segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês V

 

Um mundo escasso ontologicamente apenas podia produzir um efeito: um mundo de moralidade. O pequeno burguês vê tudo na perspectiva da moral porque não tem substância. A própria natureza é para ele moral. Moralmente perfeita e atacada pelo ser humano, que mais não é que um piolhoso. Lembra-se assim sempre dos seus antepassados quando quer caracterizar o humano. Não há uma essência humana, mas direitos do homem. Diz-se para além de bem e mal, mas a sua linguagem trai o seu pensamento exclusivamente moral: «é indecente», devemos ser solidários (conceito repelente se o há), temos dívidas em relação às outras culturas.

Uma parte de si sente-se excitada por usar uma linguagem heróica, mas acaba sempre no discurso da moral e dos bons costumes. Dar o seu sangue como os heróis? Nem pensar. Byron dá o seu sangue, os filósofos de salão dizem que devem ser os filhos dos outros a dar o seu. Porque não quer dar o seu sangue? Porque é cobarde, mas também porque é lúcido. Sabe que iria dar algo sem valor, mas é o único tesouro que tem. Como pequeno burguês tem um pé-de-meia: é o que vale a sua vida.

O seu sucesso é secreto. E de novo não há cabala. Com a vitória da democracia governa o povo. O pequeno burguês sabe-se povo. Tudo faz sentido. Mas desse povo em sentido jurídico também faz parte o proletariado, o grande burguês... e o nobre. Isso ele esquece. Tornando-se a maioria do povo, por a maioria ser pequeno burguesa, assume um poder sem disso ter consciência. Como Monsieur Jourdain, fala em prosa e não o sabia. Passou a ser soberano e julga que é uma abstracção chamada povo que o é. O mundo passa a ser moldado pela sua pequenez e nem se apercebe. Reina por descuido, decide sem saber.

O pequeno burguês é obediente. Aceita qualquer submissão desde que velada. Porque é velada a sua vida. Escondida, coberta, por isso sem mistério. É aliado dos Estados Unidos. Aliado, ou seja, obediente. Há bases americanas na Europa, não há bases europeias nos Estados Unidos. A assimetria não o alerta. Vive obediente desde que mudem as palavras. Submisso em relação à China que merece ser mais poderosa que a Europa. Porquê? Porque teria um privilégio aristocrático: a de ter sido potência antes da Europa. É tudo falso nisto, mas mais uma vez está disposto a aceitar todas as aristocracias, salvo a única que acha verdadeira, a dos nobres que o dominaram.

Desde a II Guerra Mundial começámos a ouvir uma intensificação da crítica ao pequeno burguês. Crítica? Sejamos francos. Desprezo, declaração de nojo. Da parte de quem? Sartre, Kerouac, Lacan, Barthes, Foucault, depois Derrida, Deleuze. Mudam os nomes dos movimentos, existencialista, beatnik, estruturalista, pós-moderno. De comum uma coisa, e já é muito. O desprezo do pequeno burguês. Mas eram porventura aristocratas, proletários? Nem de propósito: são todos pequeno burgueses. Como o apogeu do burguês coincide com o cume do seu desprezo, o pequeno burguês sobe ao poder sem disso ter consciência e não sob um banho de flores, mas de tomates podres.

 

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