Contra o pequeno burguês IV
Que pode fazer o pequeno burguês? Sem o passado do nobre,
sem a glória presente do burguês, sem as promessas de futuro do proletário, que
se pode dar a si mesmo? Tem de se construir um mundo de passado sem valor, um
presente que é mera promessa, e um futuro que será sempre equívoco. O seu mundo,
fá-lo à sua imagem e semelhança. E enche as escolas, as universidades, os
jornais dos seus representantes. É vencedor pelo número e pelas regras
democráticas, falta-lhe construir o seu triunfo.
Não o vejo referido. Mas toda a ontologia nasce de uma
antropologia. Nos diálogos platónicos o «prepon», o conveniente, é usado como
critério, na metafísica aristotélica os critérios homéricos são usados para desembocar
no princípio da parcimónia: é melhor que seja um só a governar... O mundo do
pequeno burguês é sem ontologia ou com fraca ontologia. Não tem materiais para
a construir e por isso nega que seja possível a construção. O Maio de 68, o pós-modernismo
e pós-estruturalismo estão cheios dessa ontologia oca, sifilítica, pronta a
colapsar ou já em escombros. Não um relativismo, porque essa é uma atitude
aristocrática, mas uma fúria perfuradora, uma vontade de destruição.
«Destruktion» dá desconstrução. Dosse bem o mostrou: o
conceito de desconstrução vem do muito nazi Heidegger. Não se quer alargar
horizontes, quer-se abater as torres que os permitem amplos. Um mundo à imagem
do pequeno burguês não tem essência porque esta assenta numa antropologia aristocrática.
Se virmos todos de baixo ficamos todos iguais. Não há quem tenha o privilégio
da hierarquia.
O pequeno burguês é o burguês que perdeu a esperança da
grandeza. O burguês pode não ter o sangue nobre das epopeias, mas pode ao menos
aspirar à superioridade filológica da sua análise. O proletário pode sonhar ser
o próximo herói. Com um custo: só colectivo. Nenhum pode ser Aquiles, mas há a
ambição que todos o sejam. Tendo perdido a esperança da grandeza, a sua grande
inimiga é a hierarquia. Corrijo: não todas as hierarquias, apenas as que o
condenam nativamente.
Que haja hierarquias que condenem sobretudo a nobreza, a
única que no fundo tem por verdadeira e por isso quer apagar, é algo que lhe
agrada. O ritual do chá japonês é profundo, o europeu vácuo. A personagem
dravídica sente-se igual aos europeus mesmo se baixa os olhos perante o
brâmane. Que um muçulmano espanque a mulher faz parte de uma intimidade que não
podemos violar, que um príncipe europeu traia a mulher, sinal da sua
menoridade. Não são todas as hierarquias que condena, mas apenas as que o
condenam.
Não são outras culturas que respeita. E está mesmo disposto
a ser por elas desprezado. Porque no fundo não dá importância ao seu juízo. Quando
lhe dizem que a Europa é nova-rica perante o antiquíssimo Oriente aceita a
ideia com alegria, não por humildade, mas por ressentimento. O importante é que
a nobreza que sempre o desprezou seja ela mesma chamada de nova-rica. Quanto a
si sabe que não tem redenção, ninguém irá incensar o seu ilustre nascimento. Que
possa dizer que a nobreza que o dominou é ela mesma de fresca data, baixo preço
a pagar pelo desprezo que suscita noutras culturas. Ao desprezo está habituado.
Prefere o de criaturas a que não dá importância ao dos seus antigos senhores.
A sua relação doentia com as hierarquias torna o pequeno
burguês arredio a toda autoridade ou submisso a qualquer uma. É o mesmo que
dotado de espírito democrático aceita o fascismo ou Mao ou diz que é proibido
proibir. Foi-lhe dada a soberania pelas constituições e não pelo nascimento e
está pronto à submissão porque ser soberano significa hierarquia. É contra a
clara separação entre os direitos dos nacionais e dos estrangeiros porque não
se acha merecedor de tratamento especial e está pronto a manter a tradição da
sua família: a de obedecer a outros. Só deseja que os outros não sejam os
mesmos. Ou seja, a antiga nobreza que o senhoriou ou a grande burguesia que o
explorou. Se os outros forem antigos escravos dos seus antigos senhores está
disposto, não a confraternizar, mas a obedecer. É de sua natureza estar
submetido, é esse o seu estado natural.
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