segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês III

 


 

Bem o sabemos: é muito arriscado indicar inícios e em última análise ocioso. Mas inevitável. E há pelo menos um início e um sintoma de que algo mudou. O início, o termo da I Guerra Mundial. O sintoma, o «Ensaio sobre o Dom» de Marcel Mauss.

Com o fim da Grande Guerra logo em 1919 em vários países ganham as eleições os candidatos dos pequenos burgueses. O condomínio entre a nobreza e a grande burguesia mostrou-se falho. Um mundo governado em condomínio mata-se a si mesmo. O pequeno burguês tem medo dos grandes movimentos da História. E entre o proletariado que o torna irrelevante ou os senhores que lhes comeram os filhos prefere soluções pacatas, razoáveis, acomodadas.

Mauss é um sintoma. Mauss e o seu comentador oficial, Lévi-Strauss. Qual a grande novidade do «Ensaio»? As ciências humanas não podem ter a objectividade da física. É um tique de quem não estudou física dizer o que ela é para depois dela se distinguir. E o que resulta desta ausência de uma absoluta irrevogável objectividade? A subjectividade é inevitável. Já que assim é, vamos reconhecê-la, e vamos usá-la. É o que pomposamente se chama de integração da subjectividade. O cientista traz-se consigo, ao menos que diga quem é.

Em si a ideia pode ter algum assento. O maior problema surge quando se começa a descrever essa subjectividade. Não. O maior problema começa quando em vez do dito cientista dizer que é a sua subjectividade e apenas ela, decide universalizá-la. E diz: esta é não a minha subjectividade mas a nossa. E dá mais um passo: é nossa, e ela mesmo inevitável.

A partir deste momento tudo passa a ser perigoso. Porque em vez de descrever as suas desgraças, o seu discurso passa a ser uma censura de desgraças colectivas. Qual o seu conteúdo em Mauss? Nós, resta saber que nós, com a nossa mentalidade mercantil e materialista, nunca perceberemos o dom gratuito, e como toda uma sociedade se pode construir com base nele.

Eu tinha quinze anos. Não vinha do mesmo passado que Mauss. E graças a Deus tinha uma formação histórica ou que ele não tinha ou esqueceu. Como? Disse eu. Nós? Que nós? Os burgueses? Seja. Mas o pobre Mauss não percebeu que em passado pagão e em dois mil anos de cristianismo o dom é fundador das nossas sociedades? Dá o nobre, o rei e a Igreja. Quando não dão perdem o seu estatuto social. Violam os seus deveres. Quem é este nós de Mauss? Ele? A família dele? A sua classe. Aceito. Mas não fala por mim e pela minha gente.

Aos quinze anos mostrei a minha repulsa por esta ideia. À minha volta os meus colegas anotavam obedientemente. Seriam eles também como Mauss. Este foi apenas um início. Depois diziam-nos que somos uma sociedade binária, que nunca iria compreender outras estruturas de pensamento. Realmente? Como podia uma cultura que há dois mil anos assenta na Santíssima Trindade ser incapaz de ir além do binário? Fez-se silêncio. Eu tinha cometido o crime de falar de teologia como antes tinha praticado o delito de referir a História.

 

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