Contra o pequeno burguês II
O burguês, para se fundamentar, procura desesperadamente um
valor universal que lhe diz ser mais que um plebeu. É inglês, ou de raça branca
ou civilizado. E pertencendo a uma nova casta nobre pode avançar pelo mundo
certo da sua legitimidade. Ou não. O nobre continua ao seu lado mostrando-lhe
que é menos, como reconhece Mann nos Buddenbruck, mas convence-se que no fundo
essa inferioridade é inofensiva e se dilui no grande plano da providência
universal. É burguês, é certo, mas antes é inglês ou branco ou civilizado.
O problema do pequeno burguês é que reúne dois estigmas: é
burguês e é pequeno. O burguês resolveu essa equação nobilitando-se. Aprende
bons modos, faz grande cultura, assume os heróis aristocráticos como seus. Os
heróis de Ariosto e Camões não foram depostos com o advento da burguesia. Apenas
se estendeu a sua vigência. Herói podia ser não apenas o nobre, mas o burguês
que o tomasse por modelo.
Solução talvez não muito durável, ilusão talvez. Mas o
paradigma não muda. A estabilidade da civilização parece assegurada, mesmo que se
tenha alargado o universo dos seus herdeiros maiores. Todos são iguais pelo
nascimento para todos poderem ser heróis. Mas ninguém se ilude: nem todos o
serão. O plebeu satisfaz-se com a possibilidade desde que lhe deixem fazer o
esforço. A transmissão da virtude, o velho conceito aristotélico da nobreza,
está garantida, não por sangue selecto, mas por uma vida exigente. Teve alguns
bons resultados. Não por muito tempo.
E compreende-se. É que se o burguês exige a igualdade das
possibilidades carece da desigualdade dos resultados. No final, tem de haver
pódios, e o grande burguês não quer estar ao lado do pequeno. O pequeno é
deixado a si mesmo, não apenas como o que nasceu mal, porque plebeu, mas que
sucedeu mal, porque continuou pequeno.
O proletariado não tem valor nenhum em nenhuma cultura. A
plebe romana, as castas baixas são geridas como um problema, uma intempérie, um
fenómeno da natureza. Reconhece-se o seu poder, mas não passa pela cabeça de
ninguém dar valor ao refugo da sociedade. Todavia, o pequeno burguês tem azar.
Na civilização cristã o proletariado rapidamente se torna figura crística. É
por sofrer, por ser frágil, que tem valor e um destino. Se o pequeno burguês
existisse numa sociedade pagã podia viver consolado por abaixo de si ter os reles,
os mais baixos. Mas o cristianismo tira-lhe esse gosto.
A nobreza tem a dimensão do passado e da glória. E como
Darwin observou, da beleza, porque a nobreza pode escolher as mulheres mais
belas. Baddo plebeia e bela entre os godos e várias imperatrizes bizantinas e
russas são disso exemplo. Não pelo sangue, não pela glória, não pela distinta
beleza se destaca o pequeno burguês. A herança pagã condena-o.
Sobra o burguês, o grande, o seu irmão de sangue, como ele
vindo da gleba. Mas aquele faz tudo para se diferenciar do pequeno. Não quer a
sua presença, não quer o seu exemplo, não quer o seu parentesco. Para onde se
pode virar o pequeno burguês?
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