sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês II

 

O burguês, para se fundamentar, procura desesperadamente um valor universal que lhe diz ser mais que um plebeu. É inglês, ou de raça branca ou civilizado. E pertencendo a uma nova casta nobre pode avançar pelo mundo certo da sua legitimidade. Ou não. O nobre continua ao seu lado mostrando-lhe que é menos, como reconhece Mann nos Buddenbruck, mas convence-se que no fundo essa inferioridade é inofensiva e se dilui no grande plano da providência universal. É burguês, é certo, mas antes é inglês ou branco ou civilizado.

O problema do pequeno burguês é que reúne dois estigmas: é burguês e é pequeno. O burguês resolveu essa equação nobilitando-se. Aprende bons modos, faz grande cultura, assume os heróis aristocráticos como seus. Os heróis de Ariosto e Camões não foram depostos com o advento da burguesia. Apenas se estendeu a sua vigência. Herói podia ser não apenas o nobre, mas o burguês que o tomasse por modelo.

Solução talvez não muito durável, ilusão talvez. Mas o paradigma não muda. A estabilidade da civilização parece assegurada, mesmo que se tenha alargado o universo dos seus herdeiros maiores. Todos são iguais pelo nascimento para todos poderem ser heróis. Mas ninguém se ilude: nem todos o serão. O plebeu satisfaz-se com a possibilidade desde que lhe deixem fazer o esforço. A transmissão da virtude, o velho conceito aristotélico da nobreza, está garantida, não por sangue selecto, mas por uma vida exigente. Teve alguns bons resultados. Não por muito tempo.

E compreende-se. É que se o burguês exige a igualdade das possibilidades carece da desigualdade dos resultados. No final, tem de haver pódios, e o grande burguês não quer estar ao lado do pequeno. O pequeno é deixado a si mesmo, não apenas como o que nasceu mal, porque plebeu, mas que sucedeu mal, porque continuou pequeno.

O proletariado não tem valor nenhum em nenhuma cultura. A plebe romana, as castas baixas são geridas como um problema, uma intempérie, um fenómeno da natureza. Reconhece-se o seu poder, mas não passa pela cabeça de ninguém dar valor ao refugo da sociedade. Todavia, o pequeno burguês tem azar. Na civilização cristã o proletariado rapidamente se torna figura crística. É por sofrer, por ser frágil, que tem valor e um destino. Se o pequeno burguês existisse numa sociedade pagã podia viver consolado por abaixo de si ter os reles, os mais baixos. Mas o cristianismo tira-lhe esse gosto.

A nobreza tem a dimensão do passado e da glória. E como Darwin observou, da beleza, porque a nobreza pode escolher as mulheres mais belas. Baddo plebeia e bela entre os godos e várias imperatrizes bizantinas e russas são disso exemplo. Não pelo sangue, não pela glória, não pela distinta beleza se destaca o pequeno burguês. A herança pagã condena-o.

Sobra o burguês, o grande, o seu irmão de sangue, como ele vindo da gleba. Mas aquele faz tudo para se diferenciar do pequeno. Não quer a sua presença, não quer o seu exemplo, não quer o seu parentesco. Para onde se pode virar o pequeno burguês?

 

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