Contra o pequeno burguês I
Os tratados antigos tinham frequentemente títulos como «contra»
ou «in». Aprendíamos em latim que se seguia um acusativo com uma ou outra
preposição. Uma e outra expressão, independentemente das subtis diferenças que entre
elas se encontram, querem dizer a mesma coisa: contra alguém, algo ou alguma
ideia. Títulos brutais para uma época delicodoce como a nossa, mas que têm o
mérito de serem inequívocos. Sim, o que mais detesta o pequeno burguês: a
franqueza, a inequivocidade.
Eis-nos dentro da questão. Temos de a levar com tempo. Ponhamos
primeiro o que está primeiro. Eu, que nasci noutra época e noutro mundo, nada
tinha contra o pequeno burguês. Era uma realidade distante, estranha, com a
qual tive de lidar pouco. Não me ocupava.
Com o tempo os meus contactos com os pequenos burgueses
aumentaram. E com eles vieram novos sentimentos. Umas vezes constrangiam-me por
imitarem, e mal, os tiques aristocráticos. As pequenas burguesas queriam ser
senhoras. Os pequenos burgueses diziam que não eram quaisquer uns, e a simples
necessidade de o dizer invalidava a sua pretensão. Outras vezes sentia pena, mas
sempre uma profunda estranheza. Não era a minha gente, o meu mundo.
Percebi que se revoltassem por serem quem eram, que quisessem
ser mais, e serem vistos como mais. Achei justo. Eu não queria ser quem eles
eram, e não conhecia quem o quisesse. A legitimidade da sua revolta assentava
precisamente no pouco que eram.
Levei muitos anos a perceber no entanto que, o que eu via
como um bicho algo deplorável mas inofensivo, estava numa marcha de tomada de
poder que nada tinha de cabala - era exigir um espírito sistemático de que não
é capaz, e desemboca no «é proibido proibir» - mas de uma lógica que resultava
da progressiva tomada de poder pela burguesia.
O século XIX pode ser o do triunfo da burguesia como lugar-comum
mas não foi o do monopólio da burguesia. A nobreza mantém um imenso poder com
as segundas câmaras, o corpo de oficiais, o diplomático, mas também vastas
propriedades e prestígio da classe. Mas a nobreza impõe-se também como
paradigma. A cultura superior opõe-se à inferior, o bom gosto, a noção de
etiqueta, tudo vem da nobreza. O burguês, para se elevar, imita o nobre
aceita-lhe os princípios. Se a nobreza lê Homero e Dante e ouve Mozart, a
burguesia não se pode quedar pela música pop e a literatura de cordel. Pode
muitas vezes ter mais afinidades com esta cultura menor, mas institui como
princípio que é menor. Aceita o paradigma aristocrático, em suma.
O problema do burguês é que nunca está em casa, o seu
próprio princípio o condena. Se qualquer um pode chegar onde está quer dizer
que nunca deixa de ser qualquer um. Para ser mais que os outros, tem de adoptar
um princípio que o nega: o aristocrático. A ideia da superioridade de um povo
inteiro ou de uma raça não cabia num aristocrata. Que todos os venezianos
fossem superiores a todos os outros povos negava o que era uma evidência para
um nobre veneziano: que tinha mais afinidades com o nobre florentino que com o
gondoleiro.
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