Nunca
escondi o meu desprezo pelo dito liberalismo dos anos 90. Não por ser contra o liberalismo
por uma questão de princípio, embora seja o primeiro a reconhecer os seus
limites: lida mal com a irreversibilidade e é etnocêntrico, julga que todo o
mundo no fundo é europeu.
Mas
sou também o primeiro a reconhecer a eminência de grandes pensadores liberais
no século XX. Não anglo-americanos, mas continentais. Thomas Mann depois de
1933, Croce, mas acima de todos, soberano, Ortega y Gasset, para mim o pensador
político mais claro e profundo do século XX. Algo nos outros cheira a requentado
hoje em dia. Só Ortega, mesmo nas suas omissões (do cristianismo, nomeadamente)
se mantém fresco, pertinente e certeiro.
O
problema do liberalismo dos anos 90 é ser acéfalo, ignorante, inculto. Em suma,
mais fruto de uma geração educada pelo Maio de 68 que uma que conhece bem as
declinações do latim e as inclinações de Homero. Consequentemente, uma geração
obediente, pronta a aceitar tudo o que lhe dizem. A Europa é criminosa, todos
os outros impérios foram pacíficos, salvo o europeu, todas as culturas são
ricas, salvo a europeia, todas as identidades a celebrar, salvo a europeia. Construiu-se
um projecto europeu dizendo que a Europa não tinha identidade, e não merece
tê-la. Em suma, o seu problema é ser tudo o contrário de um liberalismo, no que
tem de aspiração aristocrática o mesmo.
Este
liberalismo de pacotilha esquece duas das lições do liberalismo clássico, dois
dos seus conceitos centrais: a identidade e a prudência.
Entendamo-nos:
há no liberalismo uma dimensão universal (no limite europeia na verdade e por
isso também identitária) e revolucionária (mas nunca impondo a revolução
permanente). Mas o liberalismo impôs-se precisamente sobre o tema da identidade
(geralmente nacional) e da prudência (por oposição ao fanatismo).
Mas
o liberalismo clássico está associado à identidade, não vive sem ela.
Identidade nacional, sem dúvida. Mas também identidade regional e europeia. Não
há liberalismo sem identidade. O dos anos 90 não é, pois, verdadeiro
liberalismo. É o que resulta da pedagogia do Maio de 68: sem História, sem
identidade, imediato, sem lastro.
Também
é sem prudência. O liberal faz revoluções, mas para estabelecer regimes de
moderação. O poder moderador é mais que um tique: é uma marca. O que o preocupa
é o poder a mais para o parlamento, para os reis, para os tribunais... O
problema nunca é o titular do poder, mas a sua desmesura.
Ora,
o liberal, ou o que se julga tal, dos anos 90, é ele mesmo desmesura. Os
direitos alargam-se sem limites, se o poder for dos tribunais não precisa de
ter limites porque estes são por si virtuosos sem medida. Em vez da prudência,
é proibido proibir. Julga-se filho do liberalismo, mas mais uma vez é antes
filho do Maio de 68.
O
dito «wokismo», ou outro nome que se queira chamar, é filho deste liberalismo
tíbio e inculto que não sabe lidar com a identidade e a prudência. Se a Europa
é a democracia, a economia de mercado e o Estado de Direito não devíamos
conseguir distinguir entre o Japão e a Europa. Se o liberalismo é a desmesura
não há travões aos direitos e os povos não podem estabelecer limites.
O
problema não se resolve por isso com curas meramente epidérmicas contra o «wokismo».
Estas nada resolvem. Os que defendem o liberalismo, precisamente por o
defender, devem perceber que os temas da identidade e da prudência são temas
liberais por excelência. Afastá-los do campo do liberalismo é dar lugar à
recidiva, deixar o liberalismo vazio. Se os extremos cresceram é porque o dito
liberalismo dos anos 90 era filho dos extremismos dos anos 60 mais que
descendente de Goethe ou Schiller, ou Chateaubriand, que nunca conheceu.
Por
isso, os que recusam os temas da identidade e da prudência são apenas filhos de
extremistas. E os que quiserem ser verdadeiros liberais sabem que tarefa têm:
integrar no seu pensamento a identidade e a prudência, para estas não ficarem
órfãs, ou filhas de outros extremistas.
Alexandre
Brandão da Veiga