sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Grothendieck La Clef des Songes IV

 

Referências a autores cristãos e clássicos

«Maître Eckehart (é assim que escreve, em vez de Eckhart, mas há muitas grafias admissíveis) aparece 5 vezes (pp. N21, N26, N97, N158, N286). Santa Teresa de Ávila 12 vezes (pp. N18, N21, N26, N29, N28 – estou a respeitar a sequência efectiva das páginas, ao contrário do que parece -, N96, N151, N171, N286), São João da Cruz 3 vezes (pp. N21, N57, N286). Também aparece Santo Agostinho (pp. 143, N21), não aparece uma única referência a São Tomás de Aquino, a Santo Anselmo, e nem sequer o enfant terrible da escolástica, Abelardo, é referido. Não encontro referências a Padres gregos, nem sequer, o que seria de esperar, ao Pseudo-Dionísio. Aristóteles, Homero, Ésquilo, Eurípides, Píndaro, Hesíodo, Aristófanes, não são nunca referidos, Platão é referido três vezes, uma por referência a Santo Agostinho (p. 143), outra por referência ao problema do erótico e a Freud (p. N669), e uma num sentido figurado de «platónico» (p. N684). Sófocles é citado por referência a Freud : «Dans la tragédie grecque (de Sophocle), Œdipe tue son père et épouse sa Mère, quasiment par mégarde (n'ayant pas eu le plaisir de connaitre sa mère ni son père).Sans doute Freud devait-il penser que dans le sens sous-entendu, "inconscient" de la tragédie, Œdipe n'était pas si ignorant que ça de ce qu'il faisait. Toujours est-il que Freud s'est inspiré de la légende d’Œdipe pour appeler "complexe d'Œdipe" la conjonction, sous forme permanente, de deux désirs-force ou pulsion, le plus souvent inconscients l'un et l'autre | 1°) Désir charnel pour le parent de sexe opposé. | 2º) Pulsion antagoniste de rivalité vis-à-vis du parent de même sexe, et (à la limite et pour faire bon poids) désir de le tuer. | C'est ce complexe, selon Freud, qui serait à l'origine de la plupart (voire de toutes ?) les névroses psychiques, dont les symptômes représenteraient une satisfaction symbolique très détournée, et toujours inconsciente, des désirs refoulés (de possession sexuelle d'un des parents, de trépas violent de l'autre).» (p. N686). Entre os romanos Virgílio nunca é citado, o mesmo se passa com Horácio, Juvenal, Marcial, Lucrécio, Séneca, Cícero.

Estes traços permitem-nos tirar o retrato de Grothendieck nesta área. O facto de haver autores a serem omitidos não significa que alguém os ignore. O estilo de confissão pessoal que atravessa a CDS é perfeitamente compatível com a omissão, ou a referência descontraída. A verdade é que, pelos seus conceitos, percebe-se que Grothendieck tem grandes falhas de cultura humanística. Desconhece a cultura clássica, a patrística, a escolástica. Que prefira os místicos revela a sua tendência New Age para uma religião não institucional, não percebendo que os místicos que refere estavam muito alegremente integrados na Instituição por excelência, a Igreja Católica. Que não refira um místico grego, ou em geral ortodoxo, prova que a sua visão do mundo estava limitada pelo Ocidente da sua época. Como se revela em páginas antes citadas, tentou por si mesmo ganhar uma cultura teológica que não tinha. E fez o melhor que sabia com ela. Mas os perigos para um cientista da falta de cultura humanística, já Poincaré tinha avisado para eles, e muito bem. Grothendieck é apenas mais um exemplo disso.

 

Visão teológica

Numa perspectiva teológica Grothendieck mostra não perceber que Jesus e a reencarnação são incompatíveis (pp. 57, N68, N182, N201, N536, N539, N547, N548; por exemplo «Je suis persuadé que d'ici quelques siècles ou quelques millénaires, beaucoup d'hommes seront arrivés à un état de conscience assez élevé pour avoir accès (ne serait-ce que partiellement) à la mémoire de leurs incarnations passées, comme c’était d'ailleurs le cas (selon la tradition) de Bouddha.» (p. N138)). Não há Jesus sem incarnação e sem ressurreição dos corpos. O que quer dizer que este corpo concreto que temos é o único que temos prometido, e que o ser humano não é apenas uma alma, em que o corpo seria um mero revestimento descartável. Reduzir o evento crístico a uma fase nos estados de consciência é também muito prova de que segue modas da sua época. Há, além disso, comparações que o traem «J'avoue que je suis loin d'y voir clair ! Si ce n'est que Jésus, lui (et avant lui Bouddha), a été grand par l'un et par l'autre par l'amour, et par la liberté.» (p. N153). Amor e liberdade não são conceitos budistas. É desconhecer profundamente o budismo usar estes conceitos. Por isso, se Buda é enaltecido, é por ser… um cristão. De forma menos intensa quanto fala da teoria salvadora do budismo, não é igualmente muito correcto (p. N191). Há teorias de salvação não cristãs, e muitas vezes as referi. Mas o budismo está longe de ser uma teoria salvadora, porque isso seria pressupor que há algo a salvar. Se aqui não será exclusivamente cristão, Grothendieck não sai do quadro mediterrânico que herdou… do cristianismo. Também mostra que sob o ponto de vista escatológico padece de alguma ingenuidade. «Les dispositions de Fujii Guruji à l'égard du "Monde" se recouvrent avec celles de Nichiren. Celui-ci se distançait des attitudes dominantes de son temps, o les gens avaient tendance à projeter dans un "au-delà" idyllique leur nostalgie, au sein d'une société violente et agitée, d'une vie paisible et heureuse. Il insistait que le rôle de la religion n’est nullement d’inciter les hommes à porter leurs espoirs vers un autre monde mythique, mais bien d'instaurer un état d'harmonie entre les hommes au sein de la nation, et (ultimement) entre les différentes nations elles-mêmes. Il s’agit en somme d'instaurer le "Royaume de Dieu" sur terre pour reprendre l'expression évangélique), au lieu de le rejeter au ciel. C'est surement là aussi la vision de Jésus, comme celle de Bouddha, mais avec chez l'un et l'autre un accent plus grand sur l'aspect individuel, le "Royaume de Dieu dans l'homme", plutôt que collectif (le Royaume de Dieu dans la nation). C'est l'aspect collectif de l'avènement du Royaume de Dieu qui est aussi surtout souligné dans trois parmi les quatre rêves prophétiques qui me sont venus l'hiver dernier.» (p. N194). No plano da História o cristão é duplamente enraizado, e por isso a ideia de um paraíso na Terra no tempo histórico comum é sonho de bem intencionados, mas ignorantes de História e de teologia. Também: «On y sent l'élan du désir exalté de glorifier par tout son être Dieu (ou le Bouddha, ou le Créateur, ou quelque autre nom qu'on Lui donne...), par de tels actes de dépassement de soi-même et de ce que d'ordinaire on se sent humainement capable d'accomplir en faisant don total de ce dépassement à Celui qu'on glorifie ainsi en silence. Surement, ce qui rend possible un tel acte et qui lui donne tout son sens, c'est la connaissance, chemin faisant, qu'on n'est pas seul à l'accomplir ; que de quelque mystérieuse façon, Celui-là même que nous glorifions de toute notre cœur et de tout notre être S'associe et participe à cet acte de louange et d'amour (pp. N196-N197). Nenhum destes conceitos é budista, pelo menos na sua versão original (Grothendieck, que tanto se queixa de a versão original do budismo ter sido distorcida pelos seus discípulos). É budismo com sabor cristão, adaptado ao palato cristão. E o sonho profético é um conceito de Jung, que Freud nunca admitiria. «C’est l'amour surement comme il émane d'êtres comme le Bouddha ou Jésus, et qui agit sur tous ceux autour d'eux qui ne s'y ferment.» (p. N323).

No fundo. é mais um dos casos da modernidade, de homens bem intencionados (Tolstoï é um bom exemplo), que acabam num arianismo prático sem perceberem como isso contradiz a mensagem de Jesus. Se Jesus é apenas um homem perfeito, é um mentiroso. É o único silogismo válido. Porque teria de mentir sempre que se referia à Sua relação com o Pai, e à Sua própria natureza. Um homem perfeito mentiroso é de uma contradicção gritante. Mas Grothendieck não percebe o que Tolstoï não percebeu. Que a sua fome de absoluto não pode ser saciada com ervinhas apanhadas nos campos. Não há receitas, mas há métodos.

Já vi mais de uma conferência (há poucas obras que estudem Grothendieck propriamente dito) onde é comparado a Pascal. Seria um grande matemático, e um grande escritor e pensador. Com o maior respeito que tenho por Grothendieck (se não o tivesse, não o diria por mero pro forma) não é verdade. Grothendieck tem verve. Pascal tem estilo. Uma mostra do estilo de Grothendieck: «Mais à la caserne c'est foutu, tout comme à l'église et au temple ou c'est aussi foutu. Chez nous comme chez les autres, Occident ou Orient c'est tout comme : le moral martial tout comme la religion, c'est foutu, foutu, foutu ! Gnôle du soldat, ou opium du fidèle tout s'use, s’évente, faisande, se décompose, les belles ferveurs patriotardes comme les pieuses euphories à l'eau de rose.» (p. N522). Pascal dizia coisas bem mais percutantes sem perder o domínio soberano da língua. Podia passear-se descontraidamente na paisagem sem precisar de deixar um cheiro de grosseria. E Pascal tinha um profundo conhecimento de teologia e filosofia. Ora, é precisamente o que falta a Grothendieck, um homem com uma fome de absoluto, irritado à mínima manifestação de tartuferia, venha ela do cristianismo ou dos orientais. Não teve a tempo a cultura humanística que lhe permitisse enfrentar as questões com que se debate. Não sabia nem latim, em grego, não tinha cultura clássica nem teológica. E, apesar de tudo, para falar de Deus, é preciso conhecer o discurso sobre Deus. A teologia. O que tem de limitado tem de comovente. Eu sou o primeiro a perceber o desespero de alguém que tenta ultrapassar barreiras. Mas também os seus limites.

O problema de Grothendieck não é o da sua sede de absoluto. É o de a sua sede ser moral e desembocar na moral, sem sequer vislumbrar a possibilidade de ser um problema ontológico com uma solução ontológica. É mais uma variante da nossa época, da procura de assentar o mundo na moral para depois viver na frustração de que assenta em pouca coisa. Em Grothendieck não há um único momento de saciedade, nem uma luz que a ela se dirija, vive numa perpétua irritação, por boas razões, a de ter exigência, e por más, por não conhecer nenhum caminho por onde chegar a algum lado. Por isso, bem mais que ser um Pascal, é o seu inverso. Pascal tinha sólida cultura clássica e cristã, actuava com facilidade e profundeza num mundo a que pertencia. Grothendieck é mais um sintoma que um autor. Sintoma de uma cultura amputada, separando as humanidades e as ciências, de um mundo com mais possibilidades de vida que as europeias, cristãs, mas sem instrumentos para as compreender. Um mundo coxo e fragmentado, em que mesmo os maiores génios actuam tropegamente, porque no fundo lidam de forma infantil com os problemas, quando a vida lhes exige perante eles o olhar de criança, mas o estômago de um adulto.

Se a religião é pessoal e intransmissível não se percebe porque escreve sobre ela, ou porque lê sobre as experiências dos outros. Não percebeu que os textos sagrados que leu, pode fazê-lo porque estes textos foram transmitidos por uma tradição, através de instituições. Se tudo mais não fosse que experiências pessoais incomunicáveis, ou apenas comunicáveis pessoalmente, não poderia saber de experiências mais antigas que um século, porque o que sobra de forma consistente, que não se deva a mero acaso, mantém-se graças a instituições. Se estas não existissem, estaria dependente de se ter cruzado com um dos raros, ou mesmo o único sótão, em que sobrariam os Evangelhos, e para sua sorte estariam em grego, uma língua que ele não sabia ler. Grothendieck não pensou nisso, porque, muito 68, não pensou que os instrumentos que lhe permitem contestar a tradição, vêm eles mesmos de uma tradição, salvo se ele se entendesse o criador da língua francesa e de todos os seus conceitos. A sua teologia é irrealista, porque os instrumentos com que vê o mundo o são. A teologia mais uma vez revela o homem, sobretudo o que não se quer revelar a si mesmo.

O que é triste é ver um génio que o é banhar em tanta trivialidade. Membro banal da geração de 60, não gosta, ou ao menos não se sente em casa no que é, sem saber o que é, e não percebendo que a origem de todos os seus desconfortos reside precisamente no facto de não saber o que é. Inelutavelmente cristão, e tão inelutavelmente quanto se julga dele ser autónomo, julga-se capaz de ser equidistante, quando não sabe medir as distâncias, porque não sabe onde está, e não sabe onde os outros estão. Como a geração de 60, que levou ao extremo o discurso de ódio à pequena burguesia, ódio de si, porque não eram aristocratas mas precisamente pequenos burgueses, tem muitos julgamentos a fazer que são reflexivos. E que só são certeiros com o preço de ele ser deles vítima.

É conhecida a observação de Grothendieck perante Serres. Serres demostraria um teorema como quem dá um muro numa noz e lhe parte a casca, revelando-lhe o núcleo, Grothendieck demonstra envolvendo a questão num mar de abstracções até dissolver o problema. Eis que Grothendieck recebe o próprio remédio. Grothendieck dá murros no cristianismo e falha no alvo, assim como dá murros nas tradições orientais e de novo falha. Em vez de o atacar directamente (não tenho nenhuma razão para isso, a minha admiração é grande) fui envolvendo Grothendieck num mar de abstracções onde é ele quem acaba por ser dissolvido.


ABV