Dois erros sobre Nietzsche II
Nietzsche não é anticristão.
A população gosta de o ver como tal, mas apenas porque isso lhe dá uma sensação
de aventura, uma aventura que julga não perigosa, com cintos de segurança, das que
são da predilecção da época.
O principal problema de Nietzsche
é o Cristo. Ora os seus seguidores pretendem que Cristo deixou de ser problema.
Como muitas vezes acontece, são os seguidores os maiores traidores.
Que entendo por isto? O
tema da morte de Deus é tema cristão por excelência. Desde os Padres da Igreja
que é expressão trivial. O paradoxo, um dos maiores paradoxos do cristianismo,
é precisamente o da morte de Deus. Os chineses, quando contactam nos séculos
XVI e XVII com o cristianismo, é exactamente essa objecção que fazem. O Mestre
do Céu esteve durante trinta e três anos ausente, deixou de governar o mundo e
depois morreu? No século VI na Arábia, antes do islão, missionários etíopes
vêem ser-lhes atirado à cara o mesmo argumento, e Santo Agostinho fala de «Deus
crucifixus».
A morte de Deus para Nietzsche
não é uma mera verificação, uma certidão de óbito, uma peça burocrática. No
«Zaratustra» o que é dito? «Matámos Deus! O que vamos fazer agora?» As frases são
significativas. Cito de memória, mas revelam tudo o contrário do que a população
julga. Em primeiro lugar não se trata de um evento exterior. Foi acto nosso. Matámos nós. Fomos nós a matar.
De seguida há uma pergunta: que vamos fazer? É um problema. É o problema mais decisivo que existe. E é um problema nosso.
Nietzsche no fim da sua
vida assinava como Dionísio ou o crucificado. O centro do pensamento de Nietzsche
é precisamente o de se confrontar com Jesus. Jesus é o principal problema de Nietzsche,
não uma peça sobressalente que se deixou para trás porque inútil. Nesse sentido
é um pensador eminentemente cristão, como aliás era natural com a sua formação.
Tentou ser o verdadeiro Israel, o que lutou com Deus. E perdeu.
Os dois problemas estão
ligados, e em muitos mais níveis que os que possa agora desenvolver. Mas
podemos ver os seus traços principais.
Nietzsche falava dele
mesmo e não era pensador anticristão. Qual o centro da sua acusação? Muito simplesmente,
o do «nulla salus sine Ecclesia». Não há salvação fora da Igreja. Nietzsche
quis experimentar outra via. Criou o super-homem como substituto do Homem-Deus,
bebeu dos profetas pagãos, seja os gregos seja um profeta de que pouco se sabe,
Zaratustra, que foi desde sempre uma alternativa mítica ao cristianismo para os
cristãos. E significativamente já tinha sido uma desilusão para os homens das
Luzes e imagem de farsa em Mozart.
Quis demonstrar que era
possível salvação fora da Igreja, mesmo que fosse uma salvação trágica, uma dissolução,
um apagamento. E falhou. O fim da sua vida mostra que a experiência falhou. E é
esse fracasso em grande medida que fascina os seus seguidores. O seu fracasso
torna-o uma figura crística, que tanto fascina os que se dizem fora do cristianismo.
O seu projecto é a
demonstração do seu fracasso, mas a população tem dificuldade em o ver.
Nietzsche seguiu um percurso
nada original em si mesmo. Seguiu o percurso que se segue na Europa desde o advento
do cristianismo. A forma de saída do cristianismo não é algo alem do
cristianismo, mas sempre algo aquém
do mesmo. Foi à cultura grega, imaginou ir ao mazdeísmo.
Ora este percurso é sempre
e sempre o mesmo na História da Europa. Seja Celso, que ataca os cristãos, seja
Porfírio, seja Juliano, o Apóstata, ou o pagão Damáscio, que segundo alguns é
nada mais nada menos que o autor do Pseudo-Dionísio o Areopagita, o percurso
foi sempre o mesmo. Retornar ao paganismo. Sim, mas que retorno é este, que é
todo o retorno? O retorno nunca é nascer virgem, implica sempre trazer consigo
o seu ponto de origem. Estes retornos ao passado foram sempre marcados pelo cristianismo.
Ou a imitação da Igreja cristã, com Juliano, ou da doutrina, se for verdade a
tese sobre Damáscio.
Mais que o pensamento de Nietzsche,
o significativo na nossa época é o seu sucesso, e o seu sucesso por ser lido de
certa maneira. Ora Nietzsche é lido como oráculo grego e anticristão. Que está
por detrás disto? O que diz o sucesso de Nietzsche sobre a nossa época?
Que em boa verdade é simplista,
tanto mais quanto supostamente invoca a imensa complexidade de cada átomo a que
se refere. A ideia que está por detrás desta leitura de Nietzsche é que antes
eramos todos cristãos e agora deixámos todos de o ser, porque em boa verdade mesmo
os que têm fé fazem-no apenas por teimosia, sinceramente, concede-se, mas com
muitas dúvidas.
Esta visão simplista do
antes e do depois dá sucesso a Nietzsche, um sucesso errado, tão errado quanto
o que teve na filologia, onde foi pouco original. Simplista e mentirosa. Em
todas as épocas históricas houve dúvidas, em todas ser cristão foi sempre participar
de uma vibração, nunca foi estar pura e simplesmente instalado. Os sinais que
temos disso são por vezes fracos, mas isso não significa que a força de fundo
seja fraca. No tempo de Gerbert d’Aurillac, o futuro papa Silvestre II, havia
em Ravena um erudito que ensinava que os poetas antigos diziam a verdade e não os
Evangelhos, uns anos depois São Pedro Damião agastava-se com os exageros dialécticos
dos monges de Montecassino e em algumas cidades. No século XV Plethon irrompe
na cultura europeia, dando impulso a uma forte presença de neopaganismo. Mas já
séculos antes se praticava nos mosteiros e nas catedrais poesia erótica de inspiração
antiga, mas de libido fresca.
Nietzsche não fala dos
gregos, mas dele mesmo. Não é anticristão, mas mais um entre os muitos cristãos
que tentaram o experimento de sair do cristianismo e pela mesma via que outros.
Nietzsche é grande não pelo que disse sobre os outros, mas sobre si mesmo,
grande como testemunho. Como certos médicos que experimentam consigo os
medicamentos que inventaram, Nietzsche vale pelo experimento sobre si mesmo,
pelo testemunho que dele deixou. E pelo seu fracasso.
Nisto vale portanto como
prova que a modernidade apenas mente sobre si mesma. Idolatra Nietzsche como modelo,
como doutrina. Mas é a mesma modernidade que tanto insiste que o pensador não
pode ser sindicado pela sua vida - criação escolástica, o que esquece - que usa
como modelo quem não separou a sua teoria da sua vida e se fez exemplo e experimento.
A mesma modernidade que diz que já superou o cristianismo, que usa como modelo
quem foi o atleta de Cristo alternativo por excelência. A mesma modernidade que
invoca os deuses do complexo segue Nietzsche como modelo porque afinal só vê o
passado de forma simplista. A mesma modernidade que segue Nietzsche porque não
cristão, mas em boa verdade segue-o porque isso lhe permite viver os temas
cristãos sem ter de o confessar. O que assusta a modernidade não é o facto, mas
a confissão, por isso evacua.
Não, Nietzsche não falou
dos gregos nem de Wagner: falou de si. Não, Nietzsche não é anticristão mas um
pensador eminentemente cristão. Como todos nós: filhos de pagãos.
Alexandre Brandão da
Veiga
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