segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A modernidade como paródia

 

 «Moderno» é uma palavra velha. De que me lembre, surgiu na prosa latina do século IV d. C. Com o significado de «à moda de hoje», «à maneira de hoje». Os medievais, pelo menos desde a Baixa Idade Média, não se chamavam a si mesmos de «medievais», é bom de se ver. Chamavam-se de «modernos». E muitas vezes com muito mais orgulho do que a maioria se lembra e, pior que isso, com boas razões para se orgulharem.

 

Tem por isso de ser vista com suspeita a vontade de ser moderno. Ter vontade de ser algo diagnosticado na Antiguidade Tardia e enlevado na Idade Média não é em si problemático. O problema está em ter essa vontade enquanto se nega a origem do que se quer ser.

 

A modernidade apenas podia ter nascido como paródia. Imita-se o antigo e faz-se obra que se anuncia como original. Liberdade, igualdade e fraternidade, máxima aristocrática por excelência, passa a ser democrática por extensão. Já o velho Aristóteles dizia que o problema da democracia é considerar em tudo iguais os que o são apenas em algumas coisas. Todos são iguais e livres por nascimento. Que critério aristocrático. Que suspeito. Porquê o nascimento como critério? A morte de Deus surge como grande novidade quando é tema cristão trivial. Já Santo Agostinho falava de «Deus crucifixus». A velha da comunicação dos idiomas…

 

O problema é que a modernidade é uma paródia vazia e desonesta.

 

Vazia, porque tudo pode ser a moda de hoje. Desde amar judeus como matá-los, desde ajudar o próximo como o prejudicar. 

 

Desonesta, porque nunca se anuncia como paródia. Anuncia-se como origem. Uma paródia honesta só funciona caso se reconheça a sua fonte. É citação. Quando o deixa de ser, passa a ser plágio e distorção. 

 

Perante esta paródia, há tipicamente quatro tipos de personagens, segundo a sua reacção à paródia.

 

Os primeiros são os transeuntes. São os seguidores. Seguem a modernidade como seguiriam qualquer outra coisa. São os modernos por inevitabilidade, os modernos por submissão. Seguem a moda de hoje porque vivem hoje. Seguiriam a de ontem se tivessem vivido ontem.

 

Os segundos são os histriónicos. Parodiam a própria paródia. São os que perceberam que a paródia lhes dá poucas hipóteses: ou segui-la, ou intensificá-la. Incapazes de verdadeira criação e pensamento, aterrorizados pelo anonimato a que a razão os condena, decidem-se pela intensificação. É a sua única forma de existir. Se a modernidade preserva a hierarquia aristocrática na literatura, se ser patriota é amar Dante, Ariosto, Camões ou Racine, basta atacá-los e dizer que são apenas uma forma de dominação arbitrária. Bach é mais recente que a música do Mali e o free jazz é mais complexo no ritmo que Bach, Cole Porter é um génio, Mozart apenas um homem com muito talento. E o facto de os matemáticos italianos do século XVI terem resolvido em 50 anos mais problemas matemáticos que os muçulmanos em oito séculos é irrelevante. A expressão histriónica por excelência é a do «sem sentido», seja ela pronunciada por Wittgenstein ou um estruturalista. O que não gostamos nem sequer é falso, apenas não tem sentido, não surge no mundo se não para abortar. É a paródia do «credo, quia ineptus» de Tertuliano. Acredito porque é infértil, porque não produz resultado. Criam à sua volta um mundo estéril, incapaz de produzir fruto, exactamente para se sentirem em casa: no deserto.

 

Lévi-Strauss, com o seu modo pontifical, explica-nos que não podemos ver a antropofagia dos índios do Brasil como algo condenável, que isso era apenas fruto do nosso aparelho moral de pequeno burgueses europeus. De pequena burguesia talvez ele possa falar melhor que eu, porque é de onde ele vem - e não eu. E não percebe que, pela sua linha de raciocínio, a dele o judeu, o grande pecado pequeno burguês cometido pelos nazis no holocausto foi o de… não terem comido os judeus. Assim fora, toda a sua prelecção lembrar-nos-ia de como estaríamos a condenar por estreiteza pequeno burguesa (de novo, melhor sabe ele disso que eu) o que seria apenas mais uma expressão de riqueza cultural. Sem as garantias do cristianismo Lévi-Strauss acabaria estufado - e autor da ementa laudatória do prato.

 

Os terceiros são os negadores. Negam a paródia, vivem de negá-la e por isso estão dependentes dela. Se a paródia fala da novidade da morte de Deus, em vez de afirmarem a sua antiguidade, negam a sua existência. Dominados pelo protesto e pelo escândalo, não percebem que estão dependentes da paródia. Sentindo-se, mais ou menos legitimamente, assediados, defendem-se em vez de conquistarem, acoitam-se em vez de avançarem com as forças do seu passado. Compreende-se a revolta. Perceberam que a modernidade é uma paródia, e vazia, e desonesta. Mas não têm instrumentos para saírem da sua dominação. Não conhecendo nem percebendo as fontes, deixam-se escravizar pela paródia. A sua revolta é legítima, o seu clamor tem assento, só não sabem qual. Por isso, são alvo fácil da paródia. Como o demónio sempre soube, são as boas intenções os seus melhores cúmplices. Essa a tragicomédia dos anti-modernos. O de se condenarem a ser modernos.

 

Os quartos são os independentes. Uns chamam-nos de conservadores outros de reaccionários, mas as qualificações estão gastas nesta matéria como em tantas. Burke é tão conservador como Aristóteles e de Maistre tão reaccionário quanto Platão. O que fizeram foi repor selectivamente o parodiado. Não ficaram presos à paródia, seguindo-a, intensificando-a ou negando-a. Viram para além dela, perceberam a sua natureza parasita, compreenderam que era cultivada por epígonos. Esse são os que realmente não seguem a moda de hoje. São as vozes do futuro. Porque ouviram as do passado.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

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