quinta-feira, 16 de julho de 2020

Budismo e neoplatonismo II








O segundo vicio é o da incoerência na descida. Por qualquer fenómeno da mente humana (para mim «anima naturaliter gnostica», como disse várias vezes), o ser humano é muito mais capaz de atingir o supremo que perceber como deste se passa ao ínfimo. Dito por outra forma…


No budismo o Buda atingiu o «nirvandna». Seja o que isto for, não tanto o nada como a negação de oposições. Conseguiu fazê-lo sem abandonar o seu corpo, ou poude reentrar no seu corpo, se alguma vez dele saiu. Mas, mais importante ainda, temos de nos colocar a questão. Porque voltou? Por compaixão, dizem os budistas. Mas a compaixão, por mais voltas que se dê, é apego. Precisamente o apego que o «nirvandna» denuncia, porque mostra que é tudo véu de ilusão. Porque voltou o Buda? Jung dizia que havia contradição em dizer que se atingiu a negação das oposições e se tem memória disso. Mas, mais importante para mim, contradicção bem mais fundamental: porque desceu Buda? Se percebeu que é ilusão, ilusão o próprio sofrimento, porque foi ajudar os seus companheiros humanos em algo que é apenas passageiro, transitório e ilusório? O que o motiva não cabe na sua doutrina, e mostra que a sua inspiração está fora do budismo, revela que o budismo não contém em si o seu fundamento.


O neoplatonismo tem problema idêntico. Atinge o seu máximo sem problema. Eis o Uno. Mas Plotino honestamente colocou a sua grande fragilidade no «tolmein». Como se atreveu o Uno a emanar, a acabar na divisão? Se o Uno é satisfeito com si mesmo, não havendo estado superior, não carecendo de mais nada, como se atreveu ele a emanar? Como admitiu o múltiplo, seja lá como este é gerado? Para quê? Porquê? Com que justificação? É um escândalo, e Plotino viu bem o problema, e não viu a solução.



Num e outro caso, no budismo e no neoplatonismo, o problema é que a alma humana é capaz de se projectar no máximo, mas não é capaz de explicar porque o máximo desce. Sendo os dois grandes momentos da explicação humana do todo, o budismo e o neoplatonismo padecem exactamente desse limite. São factos humanos, meramente humanos, demasiadamente humanos, apenas humanos. Religiões, filosofias, doutrinas criadas por homens, mostram os limites máximos onde pode chegar o homem. Belos, mas limitados. O ser humano sabe bem imaginar como se sobe mas não explicar porque se desce.



Onde entra Santo Irineu de Lyon nisto? Salienta sempre sem parar, contra o gnosticismo, a importância do corpo. O corpo não é realidade transitória, o corpo é o estado último que nos vai ser restituído pela ressurreição dos corpos. Não foi o primeiro, mas terá sido o primeiro a sintetizar a coisa de forma tão insistente. Depois dele, Santo Atanásio de Alexandria e tantos outros.



Mas quanto à descida? Existe resposta mais consistente? Sim, mas não é humana. É a «kenosis», o esvaziamento de Deus que se dá com a Incarnação. Como se atreve o Uno a emanar, a aceitar a divisão? Como se pode aceitar que quem conhece o supremo se dirija para quem está em aflição, para o pequeno? Deus que se esvazia porque tem um amor infinito pelo homens, porque é ele mesmo amor. Absurdo, sem dúvida. Ninguém engana ninguém. São Paulo já o disse bastamente. Loucura para os homens, sabedoria para Deus. Um corpo nos salva, a do Verbo feito carne, mesmo carne, como nossa, e São João Evangelista participa também nisto.



Por isso, o cristianismo não é para mim criação humana. Em todas as criações humanas, incluindo as mais sublimes, a violência está presente, como no neoplatonismo, por via da vontade de purificação, de eliminação, pelo desprezo e mesmo a aceitação da violência física em alguns casos. No budismo a violência é evacuada (no Theravāda, não no Mahayana) com o preço de ela à partida ser ilusória, o sofrimento não ter substância.

Religião do corpo e de um Deus que desce por amor, porque é amor, respeitador da substância do sofrimento, nada de mais absurdo se disse na História, nunca tal absurdo se disse na História. E inepto, como dizia Tertuliano. Concordo. Inepto porque não produz fruto imediato. É para outras colheitas que serve.





Alexandre Brandão da Veiga.




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