Budismo e neoplatonismo II
O segundo vicio é o da incoerência
na descida. Por qualquer fenómeno da mente humana (para mim «anima naturaliter
gnostica», como disse várias vezes), o ser humano é muito mais capaz de atingir
o supremo que perceber como deste se passa ao ínfimo. Dito por outra forma…
No budismo o Buda atingiu
o «nirvandna». Seja o que isto for, não tanto o nada como a negação de oposições.
Conseguiu fazê-lo sem abandonar o seu corpo, ou poude reentrar no seu corpo, se
alguma vez dele saiu. Mas, mais importante ainda, temos de nos colocar a
questão. Porque voltou? Por compaixão, dizem os budistas. Mas a compaixão, por
mais voltas que se dê, é apego. Precisamente o apego que o «nirvandna» denuncia,
porque mostra que é tudo véu de ilusão. Porque voltou o Buda? Jung dizia que havia
contradição em dizer que se atingiu a negação das oposições e se tem memória
disso. Mas, mais importante para mim, contradicção bem mais fundamental: porque
desceu Buda? Se percebeu que é ilusão, ilusão o próprio sofrimento, porque foi
ajudar os seus companheiros humanos em algo que é apenas passageiro, transitório
e ilusório? O que o motiva não cabe na sua doutrina, e mostra que a sua inspiração
está fora do budismo, revela que o budismo não contém em si o seu fundamento.
O neoplatonismo tem problema
idêntico. Atinge o seu máximo sem problema. Eis o Uno. Mas Plotino honestamente
colocou a sua grande fragilidade no «tolmein». Como se atreveu o Uno a
emanar, a acabar na divisão? Se o Uno é satisfeito com si mesmo, não havendo
estado superior, não carecendo de mais nada, como se atreveu ele a emanar? Como
admitiu o múltiplo, seja lá como este é gerado? Para quê? Porquê? Com que
justificação? É um escândalo, e Plotino viu bem o problema, e não viu a solução.
Num e outro caso, no budismo
e no neoplatonismo, o problema é que a alma humana é capaz de se projectar no máximo,
mas não é capaz de explicar porque o máximo desce. Sendo os dois grandes momentos
da explicação humana do todo, o budismo e o neoplatonismo padecem exactamente
desse limite. São factos humanos, meramente humanos, demasiadamente humanos, apenas
humanos. Religiões, filosofias, doutrinas criadas por homens, mostram os limites
máximos onde pode chegar o homem. Belos, mas limitados. O ser humano sabe bem
imaginar como se sobe mas não explicar porque se desce.
Onde entra Santo Irineu de
Lyon nisto? Salienta sempre sem parar, contra o gnosticismo, a importância do
corpo. O corpo não é realidade transitória, o corpo é o estado último que nos
vai ser restituído pela ressurreição dos corpos. Não foi o primeiro, mas terá
sido o primeiro a sintetizar a coisa de forma tão insistente. Depois dele, Santo
Atanásio de Alexandria e tantos outros.
Mas quanto à descida?
Existe resposta mais consistente? Sim, mas não é humana. É a «kenosis», o esvaziamento
de Deus que se dá com a Incarnação. Como se atreve o Uno a emanar, a aceitar a divisão?
Como se pode aceitar que quem conhece o supremo se dirija para quem está em aflição,
para o pequeno? Deus que se esvazia porque tem um amor infinito pelo homens, porque
é ele mesmo amor. Absurdo, sem dúvida. Ninguém engana ninguém. São Paulo já o
disse bastamente. Loucura para os homens, sabedoria para Deus. Um corpo nos
salva, a do Verbo feito carne, mesmo carne, como nossa, e São João Evangelista participa
também nisto.
Por isso, o cristianismo não
é para mim criação humana. Em todas as criações humanas, incluindo as mais
sublimes, a violência está presente, como no neoplatonismo, por via da vontade de
purificação, de eliminação, pelo desprezo e mesmo a aceitação da violência
física em alguns casos. No budismo a violência é evacuada (no Theravāda, não no
Mahayana) com o preço de ela à partida ser ilusória, o sofrimento não ter substância.
Religião do corpo e de um
Deus que desce por amor, porque é amor, respeitador da substância do sofrimento,
nada de mais absurdo se disse na História, nunca tal absurdo se disse na História.
E inepto, como dizia Tertuliano. Concordo. Inepto porque não produz fruto imediato.
É para outras colheitas que serve.
Alexandre Brandão da
Veiga.
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