quarta-feira, 22 de julho de 2020

Física e História






Algures Marc Bloch disse que a principal qualidade do historiador não devia ser a objectividade, mas a probidade. E em algum sentido tem razão. Membro de uma geração cansada pelos ditames do positivismo, do padrão da física, tendo visto lucidamente que a dita objectividade muitas vezes escondia um literalismo enviesado que condenava sempre as mesmas instituições, e as mesmas doutrinas, que Bloch o tenha dito só lhe fica bem. Pagou com o seu exemplo, tem autoridade para falar no tema.


O problema é que a probidade acaba por se tornar mesquinhez. É a lei da vida. Todos os melhores conselhos podem ser subvertidos. Não é que o conselho de Bloch fosse mau, mas pode ser degenerado. E foi o que aconteceu. Os historiadores desde sempre tiveram uma grande desconfiança em relação a teorias gerais, em relação à universalidade. Os grandes da síntese histórica nunca lhes mereceram o respeito, seja este o caso de Spengler, ou de Toynbee. Ortega era respeitado por alguns historiadores, mas em boa verdade mais como exemplo ideológico que como teórico da História. Vico é citado geralmente por quem não leu nenhuma das edições da sua obra, e apenas fala de gritos primordiais.


Aponta-se aos sintetizadores da História o facto de não serem especialistas. Toynbee teve de fazer uma biografia de Constantino Porfirogénito, para provar que ainda era historiador, ou seja, que era capaz de fazer monografias. A referência errada a um documento, uma interpretação na consulta de outro, o facto de não se conhecerem todas as línguas usadas pelos personagens históricos, tudo isso é usado para descredibilizar a síntese histórica. Em suma, quem não souber quimbundo não pode fazer História de Angola. Não pode aliás fazer a História dos jesuítas, porque houve jesuítas em Angola, se for necessário chegar aqui.


Os físicos, que me atrevo a dizer não serem menos científicos que os historiadores, têm outra perspectiva. Isto é verdade em muitos aspectos para os matemáticos também, embora hoje em dia, e desde Gödel, os matemáticos evitem cuidadosamente falar de unificação. Isto não significa que tenham repulsa em relação às abstracções. Fazem-nas. Imensas mesmo. Desde que sejam limitadas a uma área, como a tão celebrada obra de Grothendieck na análise funcional, por exemplo.


Os físicos gostam de universalidade, gostam de generalizações. E, saliento mais uma vez, não são pouco científicos. Que uns físicos tenham erros de pormenor é questão menor que não os preocupa. Um autor menor há uns anos escreveu um trabalho a demonstrar que Einstein cometeu erros de palmatória em alguns dos seus artigos mais famosos. Isso não preocupou ninguém. Poincaré era famoso por ser um trapalhão na suas obras de investigação, tanto quanto era soberanamente claro nas suas obras ditas de divulgação. Índices, fórmulas, havia erros em toda a parte, nenhum físico ou matemático fica preocupado com isso. É trabalho de lavandaria, o grande cientista não perde tempo com isso. A grande ideia prevalece sobre a nódoa menor.


A ninguém passaria pela cabeça de fazer perder tempo a Heisenberg para resolver um problema de aerodinâmica da asa de um avião. E mesmo que este tivesse interesse nisso, e mesmo que tivesse errado os cálculos todos, ninguém veria Heisenberg como personagem menor por causa disso. As limpezas cabem ao pessoal menor, muito sério, muito especializado, mas ocupado em actividades mais chãs. O exemplo de Euler devia alertar-nos: poucos foram tão trapalhões na forma, e tão poucos produziram tantas maravilhas a partir de tão pouco.


Os argumentos contra os grandes da síntese histórica seriam objecto de riso por parte dos físicos. Também por outra via. Os das ciências humanas lembram sempre que a realidade é mais rica que o modelo. Para um físico essa é uma evidência . Mas é igualmente uma evidência que o modelo só é possível porque é mais simples que a realidade. Um modelo com setecentas variáveis seria recusado como pouco elegante pelos físicos, embora pudesse suscitar a gula de mil empresas pelo mundo afora. Os físicos aprenderam com Aristóteles e Ockham o princípio da parcimónia. Os historiadores actuais apenas se contentam na profusão. Mesmo que elogiem Ockham, sem saber que isso é um insulto ao seu trabalho, que o seu elogio os condena.


O argumento é sempre: a realidade é mais complexa. Um físico já sabe isso. Os físicos não têm todos Asperger. Sabem que apesar de se chamar «corpo» a uma pessoa e a uma maçã, uma pessoa e uma maçã não são a mesma coisa. Mas sabem que é apenas por chamar a ambos de «corpos» que se podem descobrir as maravilhosas estruturas comuns a todos os corpos. O físico vive bem no universal exactamente porque vive no simples. O historiador actual fica em sua casa, exactamente porque não consegue viver sem complicar.


O físico não é menos científico que o historiador. E a física consegue pensar mundos, e espaços e tempos que são inimagináveis para o historiador, menos dotados de capacidade conceptual. Ainda bem, cada um tem o seu papel. Mas que o historiador queira a todo o transe impor a complicação da realidade só mostra que é tacanho, provinciano e incapaz de pensamento abstracto. Vive acomodado na melhor das hipóteses à media res, como um Ulisses, mas  sem as suas aventuras, ao meio termo, com um pouco de abstracção, que é inevitável, mas que não lhe tire os pés da Terra. Não percebeu que, se os físicos compreenderam o que é a acção da Terra, é porque foram capazes de voar além dela.


Falta de imaginação, de espírito de aventura, medo de concorrência por quem tem mais poder de abstracção? Sim, em parte. Mas sobretudo mais um bom exemplo de como as boas qualidades se podem tornar em defeitos: fazer da probidade mesquinhez.



Alexandre Brandão da Veiga












0 comentários: