Dogmáticos e compromissórios II
Porque se usam dois critérios
tão diferentes, um para a História das ciências, outro para a História das religiões?
Porque na primeira os compromissórios passam por ser catedráticos medíocres e
sem génio e para a segunda passam por ser pessoas tolerantes?
Mais uma vez o problema
não está no objecto, mas no sujeito. O que diferencia a coisa não é o que se
estuda, mas o historiador que a estuda. Quem vê com olhos comovidos os compromissórios
presume duas coisas. Presume, porque nunca o diz, são premissas ocultas e por
isso dificilmente controláveis, escondidas (aliás, muitas vezes aos próprios
que estudam) que:
a)
A religião nada tem a ver com a verdade;
b)
A religião é só uma questão de política.
Uma premissa e a outra
estão obviamente ligadas.
A religião nada tem a ver
com a verdade, que os cientistas se espatifem entre si para descobrir a verdade
é a glória da ciência. Desde que não se diga em voz alta que é a verdade com artigo
definido do singular, é evidente. Mas, como a religião nada tem a ver com a verdade,
é puro fanatismo querer estabelecer o que seja a verdade religiosa. Afinal, a
religião nada mais é que uma fantasia tolerada no espaço público, como a
diferença entre quem gosta de feijoada e quem prefere a batata frita. É uma
mera questão de gosto, em suma.
Isto porquê? Porque a
religião é apenas uma questão de política. E por isso deve estar sujeita aos critérios
benemerentes do compromisso social. Se não o fizer, é apenas uma forma de
fanatismo. É curioso que são os primeiros a criticar a religião por ser um
fenómeno meramente político a criticá-la de novo… por não ter um comportamento
político. Querem que a religião seja algo reles para a poderem criticar e não
admitem que ela tenha uma esfera de vida própria.
Em suma, a turba, o homem
da rua, e o senhor Hitler têm razão? Têm todos razão no seu meio de vida. Se e
na medida em que a religião nada tiver a ver com a verdade, e for apenas
política, os compromissórios são os heróis. Quanto mais irénico, quanto mais compromissório
melhor. Um fundador de religião diz que se tem de matar os inimigos e outro diz
que se os deve amar… É mais ou menos a mesma coisa. Um fundador diz que se deve
repartir justamente o saque roubado aos inimigos vencidos, outro que se deve dar
aos outros os bens materiais, é quase a mesma coisa. Um diz que uma menina de nove
anos é fresquinha para o sexo, outro manda cuidar das crianças como sagradas, é
quase a mesma coisa. E isto vai obviamente até à dogmática. Se Jesus é Deus,
quase Deus, apenas um homem, um santo em especial, qual o problema? Tolstoï
passa de grande romancista a grande teólogo, mesmo que tenha sido o primeiro e
nunca o segundo.
Se bem se vir, o fundamento
desta perspectiva é o mesmo que encontramos sempre que vemos a turba. O desprezo.
Um mundo que se despreza a si mesmo, o mundo do plebeu, apenas pode assentar os
seus juízos no desprezo. Tudo é que é vida é desprezível. A ciência pode falar da
verdade, mas apenas enquanto é vista como fenómeno longe da vida. Mas tudo o
que cheira à vida é desprezado. A religião nada tem a ver com a verdade, é
apenas política, porque faz parte deste mundo baixo que observamos cá de cima.
No pátio onde circula o plebeu
vendem-se galinhas e discute-se a missa do domingo anterior. Esse o seu lugar
natural; no pátio não é comum falar de positrões nem de topos. Mas, se Deus
deixa que d’Ele falemos ao pé das galinhas, é no pátio a que pertence. E por
isso traz consigo o cheiro dos pátios. No fundo, no fundo, vejamos… O que faz o
académico que tem esta postura é revelar que nunca saiu do pátio e que sob a capa
académica se escondem dois ovos que pilhou ao vizinho do lado. Servo da gleba,
essa a sua glória. Que Deus deixe em paz a sua mente, porque a sua inteligência
já lá está desde a origem. Em descanso. E em paz. A paz que tanto elogia.
Alexandre Brandão da Veiga
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