Dogmáticos e compromissórios I
Ora observemos mais uma
vez o que se passa no pátio do bairro. Não nos misturemos com a turba, mas
observemos o que ela vai dizendo. É claro. A instituição do dogma é o resultado
de um espírito fanático, as igrejas cristãs sempre foram intolerantes, contra a
abertura e tolerância das religiões antigas. Ouvimos quem o diz? Mas é evidente.
Muita gente. Lá em baixo vejo mesmo um senhor com bigodinho que o dizia em conversas
privadas. Chamava-se Adolf Hitler. Um fervoroso seguidor de Gibbon, também ele
achava que o cristianismo tinha sido a causa da queda do império romano.
Vejamos se a turba tem
razão. E o melhor para o fazer é irmos para um lugar paralelo.
Uma classe de físicos,
chamemos-lhe de clássicos, dizem que o aumento da energia em nada afecta a
matéria, são realidades diversas. Outros, chamemos-lhe de relativistas, mas poderíamos
usar outro nome, se o leitor preferir, dizem que não é assim. Que energia a
massa são apenas aspectos de uma mesma realidade. Embora sejam necessárias grandes
quantidades de energia para criar uma sensível alteração da massa, a verdade é
que são realidades indissociáveis.
Estes dois clubes lutam
entre si e não dão razão nem a um nem a outro. Os segundos lembram que em pequenas
quantidade de energia os clássicos têm razão aproximadamente, mas os clássicos
não aceitam este argumento. Nem os clássicos nem os relativistas, estas seitas
de dogmáticos, parecem querer dar razão uns aos outros.
Mas eis que aparece um compromissório.
E para satisfazer ambas as partes diz: vejamos, a energia poderá ter algum
contributo para a massa, mas ponhamos os seus contributos numa escala logarítmica.
Assim o efeito na energia é quase imperceptível, ainda menos, muito menos que
para o relativístico, assim se satisfariam os clássicos. Mas, apesar de tudo,
será algum, e assim se satisfazem os relativistas.
O que foi dizer o compromissório…
Tanto os clássicos como os relativistas caem em cima dele, queixam-se de ele
estar a ter uma atitude oportunista, política, mas de não querer saber da verdade,
da verdade, a que tem um artigo definido do singular a defini-la.
O coitado do compromissório
é afastado por esses dois grupos de fanáticos, porque ninguém aceita a sua
mediação.
Com este lugar paralelo percebe-se
o absurdo da argumentação. Se a História da ciência fosse contada nestes
termos, se a verdade científica decorresse de compromissos como estes, pouco
teria evoluído a ciência. Em vez de procurar a verdade, a mesma, a com artigo
definido do singular, teria andado a pulular entre interesses, desejos,
expectativas de uns e de outros. E bastava haver apenas um a dizer que os
homens tinham uma «rete mirabilis» na nuca para haver alguém que diria que
devemos admitir que em alguns casos isso seria verdade, ou que existiria sempre
mas tão pequena que seria imperceptível. Galeno e a anatomia cristã do século
XVII teriam sido conciliados. Isto, mesmo que o estudo da anatomia humana
tivesse demonstrado que o ser humano não tem nada disso.
Toda a gente acharia absurdo
que a História da ciência desse lugar aos compromissórios. Porque se vê então com
simpatia os compromissórios na História do dogma? Por que razão os monotelistas,
os cultores do «henotikon» e quejandos (não se preocupe o leitor em saber o que
é isto, são os compromissórios) são deixados para trás na História de religião?
Não será isto a prova de que na história das religiões a vergonha é que vencem
os dogmáticos e perdem os compromissórios, os homens realmente tolerantes?
Afinal tudo faz sentido. A História das religiões é apenas uma história de
fanatismos… Pelo menos a do cristianismo. De preferência, a do cristianismo. Hitler
dixit, e ele era capaz de representar algo da alma do pequeno burguês
actual, que tem sempre uma pontinha de Hitler dentro de si.
Afinal o imperador Heráclio
queria a pacificação do império. Estava em guerra com os persas, e a perder territórios
no extremo ocidental do império. Tinha de pacificar esses fanáticos que são os religiosos.
E por isso uma visão de compromisso da religião faz todo o sentido…
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