quinta-feira, 26 de março de 2020

Dogmáticos e compromissórios I


Ora observemos mais uma vez o que se passa no pátio do bairro. Não nos misturemos com a turba, mas observemos o que ela vai dizendo. É claro. A instituição do dogma é o resultado de um espírito fanático, as igrejas cristãs sempre foram intolerantes, contra a abertura e tolerância das religiões antigas. Ouvimos quem o diz? Mas é evidente. Muita gente. Lá em baixo vejo mesmo um senhor com bigodinho que o dizia em conversas privadas. Chamava-se Adolf Hitler. Um fervoroso seguidor de Gibbon, também ele achava que o cristianismo tinha sido a causa da queda do império romano.



Vejamos se a turba tem razão. E o melhor para o fazer é irmos para um lugar paralelo.


Uma classe de físicos, chamemos-lhe de clássicos, dizem que o aumento da energia em nada afecta a matéria, são realidades diversas. Outros, chamemos-lhe de relativistas, mas poderíamos usar outro nome, se o leitor preferir, dizem que não é assim. Que energia a massa são apenas aspectos de uma mesma realidade. Embora sejam necessárias grandes quantidades de energia para criar uma sensível alteração da massa, a verdade é que são realidades indissociáveis.


Estes dois clubes lutam entre si e não dão razão nem a um nem a outro. Os segundos lembram que em pequenas quantidade de energia os clássicos têm razão aproximadamente, mas os clássicos não aceitam este argumento. Nem os clássicos nem os relativistas, estas seitas de dogmáticos, parecem querer dar razão uns aos outros.


Mas eis que aparece um compromissório. E para satisfazer ambas as partes diz: vejamos, a energia poderá ter algum contributo para a massa, mas ponhamos os seus contributos numa escala logarítmica. Assim o efeito na energia é quase imperceptível, ainda menos, muito menos que para o relativístico, assim se satisfariam os clássicos. Mas, apesar de tudo, será algum, e assim se satisfazem os relativistas.


O que foi dizer o compromissório… Tanto os clássicos como os relativistas caem em cima dele, queixam-se de ele estar a ter uma atitude oportunista, política, mas de não querer saber da verdade, da verdade, a que tem um artigo definido do singular a defini-la.


O coitado do compromissório é afastado por esses dois grupos de fanáticos, porque ninguém aceita a sua mediação.


Com este lugar paralelo percebe-se o absurdo da argumentação. Se a História da ciência fosse contada nestes termos, se a verdade científica decorresse de compromissos como estes, pouco teria evoluído a ciência. Em vez de procurar a verdade, a mesma, a com artigo definido do singular, teria andado a pulular entre interesses, desejos, expectativas de uns e de outros. E bastava haver apenas um a dizer que os homens tinham uma «rete mirabilis» na nuca para haver alguém que diria que devemos admitir que em alguns casos isso seria verdade, ou que existiria sempre mas tão pequena que seria imperceptível. Galeno e a anatomia cristã do século XVII teriam sido conciliados. Isto, mesmo que o estudo da anatomia humana tivesse demonstrado que o ser humano não tem nada disso.


Toda a gente acharia absurdo que a História da ciência desse lugar aos compromissórios. Porque se vê então com simpatia os compromissórios na História do dogma? Por que razão os monotelistas, os cultores do «henotikon» e quejandos (não se preocupe o leitor em saber o que é isto, são os compromissórios) são deixados para trás na História de religião? Não será isto a prova de que na história das religiões a vergonha é que vencem os dogmáticos e perdem os compromissórios, os homens realmente tolerantes? Afinal tudo faz sentido. A História das religiões é apenas uma história de fanatismos… Pelo menos a do cristianismo. De preferência, a do cristianismo. Hitler dixit, e ele era capaz de representar algo da alma do pequeno burguês actual, que tem sempre uma pontinha de Hitler dentro de si.


Afinal o imperador Heráclio queria a pacificação do império. Estava em guerra com os persas, e a perder territórios no extremo ocidental do império. Tinha de pacificar esses fanáticos que são os religiosos. E por isso uma visão de compromisso da religião faz todo o sentido…

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