Agape e Eros em Nygren IV
Para termos uma visão de
conjunto da obra de Nygren temos de a dividir (mais uma vez entronizo-me
escolástico, bem sei) nas suas várias partes:
a)
Em geral;
b)
Estrutural;
c)
Genética;
d)
Teológica;
e)
Antropológica.
Em
geral, nunca se pode salientar em demasiado a importância
do protestantismo, e nomeadamente de Lutero, ou teólogos como Nygren, na
compreensão do cristianismo. O catolicismo e a ortodoxia têm também os seus
perigos. A História mostrou a tendência para esquecer o papel fundante da
«agape» descendente de tanto se insistir na ascendente. A via ascendente nasce
da via mística e da científica. Da mística pela tendência a insistir na
ascenção, o risco da desencarnação (que se nota em alguma poesia trovadoresca
tardia e maneirista por exemplo). Da científica, aristotélica e tomista, pela
vontade de assentar tudo em dados observacionais, como o amor de si (via que é
fonte para os liberalismos, utilitarismos posteriores) como axioma sólido para
construir o sistema. Nygren tem o grande mérito de chamar a atenção para os
perigos deste unilateralismo, esta tentação ascensional como via única do
cristianismo.
Sob o ponto de vista estrutural, o traço mais importante é
ter esvaziado o que tem de específico a «agape» no cristianismo, ou seja, o de
se aplicar aos cinco tipos antes referidos. A dimensão horizontal quase não
aparece, é referida por alusão, quase por dever de ofício, mas em boa verdade
só lhe interessa a perspectiva vertical. Para consagrar uma como verdadeira (a
descendente) e outra como falsa (a ascendente).
Sob o ponto de vista genético, também Lutero não se livra da
fusão. O facto de usar conceitos jurídicos como os de graça e justificação, e
não «agape», favorece a «nomos», como se verifica pelo desenvolvimento
posterior do protestantismo, bem como o retorno ao Antigo Testamento. O Deus de
vingança reaparece sob a ambição de pureza. A ideia de purificação é aqui
também significativa. A interpretação que faz da reforma como purificação
leva-o a julgar-se livre das reverberações culturais. Mas isso é esquecer que o
cristianismo é religião nua e, por isso, sempre aculturada, por definição. A
intenção é boa, mas já se sabe onde leva quando se recusa a ideia de que os
cristãos são sempre pagãos cristianizados: a uma ideia de pureza que nos faz
esquecer que vivemos uma religião incarnada.
Sob o ponto de vista teológico, Nygren quase esvazia a
Trindade, por a tratar apenas de raspão. O amor de Tipo 1 quase não é referido, quase como se fosse obsceno. A visão
da religião torna-se burguesa, como se não quisesse invadir a intimidade,
divina, no caso. O Deus trinitário continua a ser trinitário, mas como se isso
fosse Seu problema, no qual não nos temos de nos meter. Se Deus não tem «agape»
em relação a si mesmo, o que une as três Pessoas da Trindade? Velando o
problema da intimidade, Nygren corre o risco de velar o cristianismo, de lhe
retirar o assento da publicidade. Deus ama-nos, e mais nada, seja qual for a
Sua vida interna.
Mas, como é típico, ao
empobrecimento teológico segue-se o antropológico.
A relação entre os homens é referida com ênfase, mas apenas como uma mera
combinatória, a relação consigo é exilada da possibilidade de «agape», ter amor
por si é pecado. Mas o empobrecimento antropológico atinge sobretudo em Nygren
de forma directa o Tipo 5, a relação
ascendente do homem em relação a Deus. Da fé, caridade e esperança sobra a fé
como centro. Não há espaço para a esperança (em relação a quem se deve dirigir
a esperança por excelência senão a Deus?), nem caridade (a quem se deve referir
a caridade enquanto amor senão a Deus?). o «eros em relação a Deus é
ostracizado. Esquece-se de que a sua posição, como a de muitos protestantes, é
a de um empobrecimento antropológico maior, que limita o próprio significado de
criação. A «pistis» é abertura a Deus, sem dúvida. Mas qual o fundamento desta
abertura? No limite, o da dádiva gratuita e incondicionada de si. Ou seja,
precisamente, da «agape». Se não houver «agape» em relação Deus a «pistis»
torna-se acto imotivado. A «elpis», como disse, dirige-se sobretudo a Deus. E o
«eros» também não é proibido em relação a Deus. O «eros» é marca da nossa
insuficiência, da insuficiência do nosso amor em relação a Deus. Desejamos
porque sentimos a falta. E isso é sinal duplo: bom porque desejamos o mais
desejável, mau porque sabemos estar longe dele. Mais uma contradição de Nygren,
porque reconhece que o «eros» já se encontra implícito em São João Evangelista,
autor apesar de tudo canónico também para os protestantes. Reduzir a relação a
Deus à fé é esquecer a base desta fé e esquecer que a relação com Deus é
múltipla. Mas negar «agape» em relação a Deus, quando esse é precisamente o
maior mandamento «amar a Deus sobre todas as coisas» não pode ser mera
distracção, é evitamento. Amar a Deus sobre todas as coisas sem incarnação pode
ser mandamento de um Deus cioso. Amar a Deus sobre todas a coisas só faz
sentido se for possível uma real amizade com Deus, um sentimento recíproco, a
que podemos almejar ao menos, um amor imotivado, espontâneo e incondicional a
Deus. Ou seja, sob o ponto de vista da criação, significa que nos foi dado um
sopro divino e que, se não somos divinos de origem, porque vindos do nada, Deus
não criou meros fantoches que o enternecem, mas seres a quem deu participação
no Espírito divino. E se essa participação existe (de que o maior sinal é a
liberdade, como bem viu São Tomás de Aquino), então também o homem deve ser
capaz de amar Deus. Com os seus limites, sem dúvida. Mas capaz de «agape» em
relação a Deus, em suma. Se o cristianismo ocidental evita o tema da
deificação, o protestantismo dá mais um passo nesse sentido até à recusa
absoluta. E isto é tanto mais sintomático quanto o próprio Nygren reconhece que
Santo Irineu está particularmente próximo do cristianismo primitivo e proclama
a definição. Isso significa que o convite de Deus do amor é apenas para ficar à
porta, ou ser mero convidado, não para participar plenamente do festim.
Alexandre Brandão da Veiga
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