Descrença e neopaganismo
Entendamo-nos. Sob o
ponto de vista lógico, a descrença não está vinculada ao neopaganismo. Sob o
ponto de vista pessoal, pode surgir de muitas fontes, embora Novalis tivesse
alguma razão ao dizer que está associada à perda de um primeiro amor. Mesmo que
esse amor não tivesse sido vivido.
Mas a verdade é que, na
Europa, numa perspectiva cultural e não da vidinha de cada um, a descrença se
associa ao neopaganismo. E isto por duas vias: pelo seu nascimento e pela sua continuação.
A visão do servo da gleba
é a de que havia uma altura em que todos eram crentes, tão crentes, que nem eram
capazes de conceber a descrença. Que em todas as épocas houvesse quem falasse
de descrença e de cepticismo e mesmo de ateísmo, aos seus ouvidos soa como algo
sem importância, mas apenas porque decidiu que o homem medieval era incapaz de conceber
a descrença, incapaz de a viver, incapaz de a teorizar. Mas porque lutava então
o homem medieval contra algo que não existiria ou, pior ainda, não poderia
conceber?
Mas, se bem virmos, em
todas as épocas, quando temos em atenção as vozes que ouvimos, as fontes por
vezes fracas que nos sobram, há sempre um mesmo cântico. Há algures alguém que
diz que os antigos tinham razão, que o cristianismo não contém a verdade. Na Ravena
do fim do século X, início do século XI, na altura do futuro papa Silvestre II,
o célebre papa do famigerado Ano Mil, falava-se de um professor que ensinava
que os poetas antigos diziam a verdade. Ou que São Pedro Damião avisasse contra
os excessos de dialéctica que querem meter Deus em gavetinhas? Com Plethon no
século XV ainda mais cresce esta voz, que passa pela filologia clássica de algumas
academias italianas, de salões franceses, ou universidades inglesas, atravessando
a Alemanha do século XVIII.
Pelo seu nascimento a descrença
está sempre associada ao neopaganismo.
Mas também pela sua continuação.
Podia-se dizer: Realmente, nasceu a ideia por inspiração pagã. Mas neste
momento estamos numa outra época, ganhou autonomia, podemos ser descrentes nus,
sem as vestes do paganismo.
Será?
O que fazem os campões da
descrença?
Cantam laudas à liberdade
sexual dos pagãos, liberdade que nunca existiu, pelo menos nos termos em que
cantam.
Quando afirmam a inexistência
de Deus, dizem algo que é verdadeiro apenas para um deus pagão, um deus das lacunas,
que serve apenas para explicar o trovão e o movimento do universo. O problema é
que esse não é o Deus do cristianismo. Julgando atacar o cristianismo mostram
que só concebem (intelectualmente) deuses como os pagãos.
Quando defendem a tolerância,
lembram a maravilhosa tolerância dos paganismos antigos, ignorando as vezes que
o Senado romano proibiu religiões, mandou queimar livros sagrados e matar
seguidores dos bacanais ou religiões orientais, ou como a democracia grega expulsou
ritos estrangeiros.
Querem os direitos do
homem e o respeito da dignidade da pessoa humana, não percebendo que só o
cristianismo criou este conceito.
São apenas alguns
exemplos. Os mesmos que acreditam que vivem uma descrença nova, refrescada, nascida
do nada, que já não carece da inspiração dos poetas antigos, em boa verdade
apenas desconhecem os poetas antigos que seguem, e os senadores antigos que
imitam ao querer suprimir a religião.
Porquê neopaganismo e não
pura e simplesmente pagãos? Porque o neopagão é o cristão, e por isso nascido
do cristão. A única religião que acham verdadeira é o cristianismo, o resto apenas
folclore. Por isso é tão importante para eles dizê-la falsa. Não perdem tempo a
chamar de falsa a religião xamânica, porque para eles é apenas folclore. Essas
religiões podem ficar, porque afinal não é possível um homem civilizado
acreditar nelas. Mas que homem civilizado, pergunta-se? O cristão, obviamente,
o europeu.
O neopagão é apenas um cristão,
mas um cristão de pernas para o ar, espécie de São Pedro de caricatura. Nasce
de fonte cristã sem o saber, e imita os pagãos desconhecendo-os. A sua pretensão
de novidade é cristã, a sua pretensão de razão assentam-na no mito pagão. Que,
lógica e pessoalmente, a descrença seja autónoma admite-se. Significativo é que,
quando se queira manifestar, apenas possa recorrer ao tópico pagão e cristão. Triste
apego, triste ignorância.
Neopagão, porque já não
vão a tempo de serem pagãos. Neopagão, porque são cristãos. Kierkegaard foi dos
únicos a falar desse fenómeno, embora por alto, no «Conceito de Angústia». Era
clarividente, mas não perdeu muito tempo com eles. Façamos o mesmo. Refiramo-los
como se faz uma nota de pé de página. Eventualmente plena, mas afinal
secundária.
Alexandre Brandão da
Veiga
2 comentários:
Venho desejar um bom Natal.
Um bom ano (e década).
Enviar um comentário