sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Agape e Eros em Nygren II








Quanto ao Tipo 4, o amor de Deus em relação aos homens (descendente).

a)     Da síntese de Santo Agostinho decorre que é de uma só fonte, a graça, a «caritas», e o amor de si (BOLGIANI, Franco, «Introduzione all’Edizione Italiana», in NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni, Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, p. XLVII). O amor cristão tem um significado completamente diverso dos sentidos anteriores, não é o comando do amor que explica a «agape» cristã mas é percepção do carácter original desta que o define, não conhece confins e abraça todos (NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni, Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, pp. 42-43).


b)    No judaísmo, a «nomos» é a expressão mais alta deste amor (p. 50). No judaísmo o amor de Deus transborda sobre os que O temem, sobre os justos, não sobre os pecadores (p. 50). 


c)     A «agape» que vem exigida do cristianismo é a imagem da manifestada por Deus, como essa deve ser espontânea e imotivada, sem cálculo, ilimitada e incondicionada (p. 70). Como o amor de Deus é o amor dos pecadores, o amor dos cristãos é o amor dos inimigos (p. 80). 


d)    São Paulo teria percebido que não existe nenhuma via do homem para Deus, mas apenas de Deus para o homem (p. 90). A «homoousia» mais não é que a confissão da «agape» de Deus e uma recusa da concepção helenística de «eros», o sacrifício de Cristo é a própria «agape» de Deus (p. 214). 


e)     Por reforma entende-se a purificação do cristianismo (p. 216). 


f)     Tem razão quando salienta que em Marcion o elemento fundamental é o da «agape» por oposição à «nomos» (p. 231). E é bem visto afirmar, por mais esquemático que isto seja, que em Tertuliano impõe-se a «nomos» (típico romano que era), em Orígenes o «eros» e em Santo Irineu o motivo da «agape» (p. 231). Marcion lembra a natureza paradoxal da «agape» de Deus, porque nada nas qualidades dos homens explica este amor (p. 310). Já em São João e nos Padres da Igreja aparece a ligação entre o amor de Deus e a Incarnação (p. 320). 


g)    Para Tertuliano o motivo do «agape» não dá garantias jurídicas suficientes, e por isso insiste na «nomos» (p. 339). Celso critica o cristianismo por se dirigir aos pecadores e não aos homens purificados (p. 375). Santo Irineu vê no amor a causa da criação (p. 394). Caso em que é mais difícil afirmar a influência cristã é o de Proclo em que o «eros» já não é apenas «eros» de si da divindade, mas os próprios deuses sentem «eros» pelos inferiores (p. 588). Seja como for, o preço a pagar por Proclo pela universalidade do «eros» teve de ser este não poder ser apenas ascendente, mas igualmente descendente e horizontal, como a «agape» cristã. Mas a exigência não me parece ser só apologética. A brecha da «tolma» de Plotino era uma lacuna essencial no sistema neoplatónico. Se em Dante é forte o motivo do «eros» a «agape» é ainda fortemente presente com a ideia de dom da graça de Deus (p. 634). 


h)    Ver, como faz H. Scholz, na «caritas» de Santo Agostinho e Dante uma simples interpretação do conceito neotestamentário de «agape» é iludir o problema da concepção medieval da «caritas», como bem vê Nygren (p. 634), vendo bem o elemento de fusão, mas exagerando-o para salientar o papel de Lutero. 


i)      Muito honestamente reconhece o papel dado à graça em São Tomás de Aquino, pois para ele sem graça não há mérito (p. 636). «Soli Deo gloria» e «sola gratia» é também signo distintivo da piedade medieval (p. 637). É verdade que a concentração na Paixão de Cristo na Idade Média permitiu dar nova intensidade ao motivo da «agape», embora a insistência contemporânea na mística da esposa, e da religiosidade do amor cortês, tenha feito entrar o «eros» nesse amor (p. 679). O catolicismo é uma «complexio oppositorum» (p. 753). 


j)      Ficino não concede espaço ao amor divino, o único amor que conhece é o amor de si humano (p. 694). 


k)    Em Lutero, o amor cristão não tem nada a ver com o amor que os homens têm de Deus, mas com o amor que Deus tem pelos homens, e a sua teoria da justificação é afinal uma reforma da teoria do amor (pp. 699-700). Da eucaristia os católicos fizeram um sacrifício, e sacrifício e testamento são incompatíveis (p. 711), esquecendo-se que para o catolicismo existe um e só um único sacrifício, o da cruz, actualizado na eucaristia. Na sua perspectiva de reformado, centra a «agape » apenas na descendente (p. 716). Para Lutero Deus não fez uma escada para subirmos até Ele, mas para Ele descer até nós (p. 722). O «eros» é a via do homem a Deus, a «agape» é a via de Deus para o homem (pp. 723-724).


Quanto ao Tipo 5, o amor dos homens em relação a Deus (ascendente).

a)     Parte da desvalorização deste encontra-se na hostilidade em relação à mística do protestantismo (BOLGIANI, Franco, «Introduzione all’Edizione Italiana», in NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni, Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, p. XLI, que não estabelece expressamente a relação entre uma e outra coisa, e que não pode fazer esquecer os pietismos, nomeadamente). 


b)    É uma solução fácil dizer que a «agape» descende do «eros» antigo e estabelecer uma relação de superioridade da primeira em relação ao segundo (NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni, Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, p. 20). A diferença entre «eros» e «agape» não é de valor, mas de natureza, o «eros» é estranho ao cristianismo é pagão (p. 21). Ora, esta conclusão de Nygren não é ocasional. Tem a ver precisamente com a visão ética do protestantismo, que tende a desvalorizar a mística. Não percebeu por isso a falsidade da sua asserção: pode-se falar de «eros» em relação a Deus. 


c)     Tem razão quando diz que o cristianismo é substancialmente uma religião ética, que não existe uma ética independente da religião (pp. 27, 74). Mas esquece-se que, antes de ser uma ética, é uma religião. 


d)    O «eros» platónico, só na sua forma de «eros» celeste pode concorrenciar a «agape» cristã (p. 32). Mas precisamente por estar purificada de toda a ligação aos sentidos (p. 31), tem uma natureza diferente dela. O «eros» platónico não é original, já vem da piedade mistérica (p. 137).


e)     A «caritas» da Idade Média é um fenómeno complexo que reúne elementos da «eros» e da «agape» (p. 35), fruto deste conúbio (p. 38). Lutero destruiu a doutrina católica do amor, essencialmente fundada no «eros» (p. 39). O conceito de «agape» não é apto para definir o comportamento do homem em relação a Deus (como o diz expressamente a p. 103). Nesta relação o conceito adequado não é «agape», mas «pistis» (p. 103). Mas, ao mesmo tempo, diz que «agape» vem contraposta à gnose (p. 114) e com razão. Mas esta afirmação não faz sentido sem admitir «agape» ascendente, porque a gnose por definição é ascendente. Isto afirma-o quando diz que a gnose é um sinónimo de «eros» (pp. 119, 353), e que o gnosticismo é essencialmente sincrético (p. 280). 


f)     O «eros» e o retorno do homem do mundo sensível para o supra-sensível (p. 145). O «eros» é a tendência da alma para o alto (p. 147), e já em Platão ser intermediário, um grande «daimon» (p. 149). Em Plotino tudo deriva do Uno e tudo volta ao Uno (p. 163). Em São João Evangelista já se encontram marcas de «eros» (p. 134; a sua preferência por um cristianismo paulino é evidente, mas para desconsiderar São João teria de pôr em causa a sua natureza canónica). Há uma linha ininterrupta do «eros» que vai do neoplatonismo à teologia alexandrina através de Pseudo-Dionísio, em parte através de Santo Agostinho, Escoto Eriúgena, a mística medieval, até ao idealismo alemão, e aos sistemas especulativos pós-kantianos (pp. 193-194). 


g)    Tertuliano tende a insistir na ideia contrária, e por isso afirma que a alma não tem natureza divina, mas corpórea (p. 331). Clemente de Alexandria usa a expressão de Inácio que afirma que a fé é o princípio, o amor o cumprimento (p. 358). Se Clemente usa «agape» como apatia em relação ao mundo inferior e aspiração ao superior está em boa verdade a seguir o «eros» (p. 360). A referência à escada de Jacob é ocasião de entrada do «eros» (p. 372). Em Orígenes, o final coincidirá com o ponto inicial, Deus será, como no início, tudo em tudo (p. 382), sintoma evidente de antropologia «ex deo». No entanto, a palavra «eros» não aparece nunca no Novo Testamento (p. 387). A verdade é que Orígenes, em interpretação errada de Inácio, que diz que crucificou o seu «eros» (o físico), vem concluir que Deus é «eros» (pp. 388-389). 


h)    A análise de Nygren em relação a Santo Ireneu é particularmente significativa. Reconhecendo que é o autor mais próximo do cristianismo primitivo (p. 391), afirma que a sua ideia de deificação é sintoma de presença do motivo do «eros» no seu pensamento (p. 409). Nygren deixa-se aqui trair pela sua perspectiva protestante, ou melhor, ocidental. A oferta de deificação é a maior oferta da «agape» divina. Um pagão não é efectivamente deificado. Entre os autores pagãos é significativo que a expressão usada seja a de «homoiosios». Proclamar a deificação não implica necessariamente seguir o «eros». A deificação pode ser oferta de Deus. 


i)      Esquecendo isto, afirma por isso que o «eros» e «agape» foram fundidos (p. 411). Da mesma forma, em Santo Atanásio considera que a descida da «agape» é a forma de subida do «eros» (p. 429). Em São Gregório de Nyssa diz que é o motivo do «eros» que domina e não o de «agape» (p. 433), mostrando mais uma vez a desconfiança protestante em relação ao misticismo. 


j)      A concepção agostiniana de amor cristão foi até hoje em dia mais determinante que a de Lutero (p. 455). Com Santo Agostinho nasce uma nova concepção de amor que não pode ser definida nem como «eros» nem «agape», a de «caritas» (p. 456). Para ele há um acordo perfeito entre o Antigo e o Novo Testamento, a diferença é que no Antigo há um comando de amor, Deus exige amor, no segundo Deus amor (p. 459). Partiu de uma concepção neoplatónica do amor («eros») (p. 466) de que nunca se libertou (p. 470), porque assente no desejo (p. 507). A «caritas é «dilectio ordinata» a «cupiditas» é «dilectio inordinata» (p. 515). A felicidade não consiste em amar o Sumo Bem mas em possuí-lo, o que para Nygren é relativizar a «caritas», e degradá-la em instrumento (p. 519). Mas a verdade é que tem de lembrar que para Agostinho o homem veio do pó, e antes de ser pó nada era (p. 535), o que é um travão a uma antropologia «ex deo»: a finalidade não é voltar à origem porque isso seria voltar ao nada. A verdade é que insiste que o pensamento de Agostinho está marcado pelo «eros», porque acha que a descida de Cristo tem como meta a nossa subida (p. 538). Ligando a graça e a «caritas», obteve uma síntese entre a primitiva concepção cristã da salvação e a soteriologia helenística, síntese que prevaleceu na Igreja medieval; se a sua concepção da graça foi recusada, a sua concepção de graça como «amor infuso» que torna possível a sua ascenção até Deus foi seguida (pp. 540-541). 


k)    No Pseudo-Dionísio, pela oração não atraímos Deus a nós, mas antes elevamo-nos a Ele (p. 602). Mas a tentativa dionisíaca de apagar o «agape» falha com João Clímaco em que no topo da escada está o «agape» (pp. 611-612). Em Máximo, o Confessor, são tratados sem distinção «agape», «eros», «apatheia» e «epithymia» (p. 614). A verdadeira e profunda oposição entre a concepção evangélica e a medieval está no facto de na segunda a graça ser essencialmente um instrumento da ascenção humana, enquanto esta ascenção não existe na primeira (p. 639). 


l)      Para São Bernardo de Clairvaux a imitação de Cristo deve ser imitação da Sua humildade e da sua elevação (p. 651). A Idade Média teve dificuldades em encontrar um puro amor, bem o «amor amicitiae» de São Tomás de Aquino, nem os «quatuor gradus amoris» de Bernardo, nem a «mortificatio» da mística puderam expulsar o «eros», apenas o puderam sublimar (p. 666). Scoto Eriúgena é dos raros (talvez por saber grego) a ter percebido que sob a capa do «amor» se escondia o «eros» (p. 668). São Tomás não tinha ideia da destrinça grega entre «agape» e «eros» (p. 683). Ricardo de São Victor ignora o amor de Deus, não se refere à «agape» (p. 670). 


m)   O amor cortês, a «Minne», incorpora-se no tema do amor cristão (p. 676). Nos conventos de religiosas, o «eros» foi particularmente acentuado (p. 677). Por muito que no catolicismo se fale no amor de Deus, a verdade é que o acento é dado ao amor que devemos a Deus (p. 699). A tendência medieval é definida pela tendência para o alto (p. 714), enquanto para Lutero a única «agape» eficaz, verdadeira, é a descendente (pp. 731, 735-736), a corrente do amor vem para baixo (p. 751).


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