Agape e Eros em Nygren II
Quanto ao Tipo 4, o amor de Deus em relação aos
homens (descendente).
a)
Da síntese de Santo Agostinho decorre que
é de uma só fonte, a graça, a «caritas», e o amor de si (BOLGIANI, Franco, «Introduzione
all’Edizione Italiana», in NYGREN, Anders, Eros
e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni, Edizioni
Dehoniane, Bologna, 2011, p. XLVII). O amor cristão tem um significado
completamente diverso dos sentidos anteriores, não é o comando do amor que
explica a «agape» cristã mas é percepção do carácter original desta que o
define, não conhece confins e abraça todos (NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana
dell’Amore e le sue Transformazioni, Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, pp.
42-43).
b)
No judaísmo, a «nomos» é a expressão mais
alta deste amor (p. 50). No judaísmo o amor de Deus transborda sobre os que O
temem, sobre os justos, não sobre os pecadores (p. 50).
c)
A «agape» que vem exigida do cristianismo
é a imagem da manifestada por Deus, como essa deve ser espontânea e imotivada,
sem cálculo, ilimitada e incondicionada (p. 70). Como o amor de Deus é o amor
dos pecadores, o amor dos cristãos é o amor dos inimigos (p. 80).
d)
São Paulo teria percebido que não existe
nenhuma via do homem para Deus, mas apenas de Deus para o homem (p. 90). A
«homoousia» mais não é que a confissão da «agape» de Deus e uma recusa da
concepção helenística de «eros», o sacrifício de Cristo é a própria «agape» de
Deus (p. 214).
e)
Por reforma entende-se a purificação do cristianismo (p. 216).
f)
Tem razão quando salienta que em Marcion o
elemento fundamental é o da «agape» por oposição à «nomos» (p. 231). E é bem
visto afirmar, por mais esquemático que isto seja, que em Tertuliano impõe-se a
«nomos» (típico romano que era), em Orígenes o «eros» e em Santo Irineu o
motivo da «agape» (p. 231). Marcion lembra a natureza paradoxal da «agape» de
Deus, porque nada nas qualidades dos homens explica este amor (p. 310). Já em
São João e nos Padres da Igreja aparece a ligação entre o amor de Deus e a
Incarnação (p. 320).
g)
Para Tertuliano o motivo do «agape» não dá
garantias jurídicas suficientes, e por isso insiste na «nomos» (p. 339). Celso
critica o cristianismo por se dirigir aos pecadores e não aos homens purificados
(p. 375). Santo Irineu vê no amor a causa da criação (p. 394). Caso em que é
mais difícil afirmar a influência cristã é o de Proclo em que o «eros» já não é
apenas «eros» de si da divindade, mas os próprios deuses sentem «eros» pelos
inferiores (p. 588). Seja como for, o preço a pagar por Proclo pela
universalidade do «eros» teve de ser este não poder ser apenas ascendente, mas
igualmente descendente e horizontal, como a «agape» cristã. Mas a exigência não
me parece ser só apologética. A brecha da «tolma» de Plotino era uma lacuna
essencial no sistema neoplatónico. Se em Dante é forte o motivo do «eros» a
«agape» é ainda fortemente presente com a ideia de dom da graça de Deus (p.
634).
h)
Ver, como faz H. Scholz, na «caritas» de
Santo Agostinho e Dante uma simples interpretação do conceito neotestamentário
de «agape» é iludir o problema da concepção medieval da «caritas», como bem vê
Nygren (p. 634), vendo bem o elemento de fusão, mas exagerando-o para salientar
o papel de Lutero.
i)
Muito honestamente reconhece o papel dado
à graça em São Tomás de Aquino, pois para ele sem graça não há mérito (p. 636).
«Soli Deo gloria» e «sola gratia» é também signo distintivo da piedade medieval
(p. 637). É verdade que a concentração na Paixão de Cristo na Idade Média
permitiu dar nova intensidade ao motivo da «agape», embora a insistência
contemporânea na mística da esposa, e da religiosidade do amor cortês, tenha
feito entrar o «eros» nesse amor (p. 679). O catolicismo é uma «complexio
oppositorum» (p. 753).
j)
Ficino não concede espaço ao amor divino,
o único amor que conhece é o amor de si humano (p. 694).
k)
Em Lutero, o amor cristão não tem nada a
ver com o amor que os homens têm de Deus, mas com o amor que Deus tem pelos
homens, e a sua teoria da justificação é afinal uma reforma da teoria do amor
(pp. 699-700). Da eucaristia os católicos fizeram um sacrifício, e sacrifício e
testamento são incompatíveis (p. 711), esquecendo-se que para o catolicismo
existe um e só um único sacrifício, o da cruz, actualizado na eucaristia. Na
sua perspectiva de reformado, centra a «agape » apenas na descendente (p. 716).
Para Lutero Deus não fez uma escada para subirmos até Ele, mas para Ele descer
até nós (p. 722). O «eros» é a via do homem a Deus, a «agape» é a via de Deus
para o homem (pp. 723-724).
Quanto ao Tipo 5, o amor dos homens em relação a
Deus (ascendente).
a)
Parte da desvalorização deste encontra-se
na hostilidade em relação à mística do protestantismo (BOLGIANI, Franco,
«Introduzione all’Edizione Italiana», in NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni,
Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, p. XLI, que não estabelece expressamente a
relação entre uma e outra coisa, e que não pode fazer esquecer os pietismos,
nomeadamente).
b)
É uma solução fácil dizer que a «agape»
descende do «eros» antigo e estabelecer uma relação de superioridade da
primeira em relação ao segundo (NYGREN, Anders, Eros e Agape. La Nozione Cristiana dell’Amore e le sue Transformazioni,
Edizioni Dehoniane, Bologna, 2011, p. 20). A diferença entre «eros» e «agape»
não é de valor, mas de natureza, o «eros» é estranho ao cristianismo é pagão
(p. 21). Ora, esta conclusão de Nygren não é ocasional. Tem a ver precisamente
com a visão ética do protestantismo, que tende a desvalorizar a mística. Não
percebeu por isso a falsidade da sua asserção: pode-se falar de «eros» em
relação a Deus.
c)
Tem razão quando diz que o cristianismo é
substancialmente uma religião ética, que não existe uma ética independente da
religião (pp. 27, 74). Mas esquece-se que, antes de ser uma ética, é uma
religião.
d)
O «eros» platónico, só na sua forma de
«eros» celeste pode concorrenciar a «agape» cristã (p. 32). Mas precisamente
por estar purificada de toda a ligação aos sentidos (p. 31), tem uma natureza
diferente dela. O «eros» platónico não é original, já vem da piedade mistérica
(p. 137).
e)
A «caritas» da Idade Média é um fenómeno
complexo que reúne elementos da «eros» e da «agape» (p. 35), fruto deste
conúbio (p. 38). Lutero destruiu a doutrina católica do amor, essencialmente
fundada no «eros» (p. 39). O conceito de «agape» não é apto para definir o
comportamento do homem em relação a Deus (como o diz expressamente a p. 103).
Nesta relação o conceito adequado não é «agape», mas «pistis» (p. 103). Mas, ao
mesmo tempo, diz que «agape» vem contraposta à gnose (p. 114) e com razão. Mas
esta afirmação não faz sentido sem admitir «agape» ascendente, porque a gnose
por definição é ascendente. Isto afirma-o quando diz que a gnose é um sinónimo
de «eros» (pp. 119, 353), e que o gnosticismo é essencialmente sincrético (p.
280).
f)
O «eros» e o retorno do homem do mundo
sensível para o supra-sensível (p. 145). O «eros» é a tendência da alma para o
alto (p. 147), e já em Platão ser intermediário, um grande «daimon» (p. 149).
Em Plotino tudo deriva do Uno e tudo volta ao Uno (p. 163). Em São João
Evangelista já se encontram marcas de «eros» (p. 134; a sua preferência por um
cristianismo paulino é evidente, mas para desconsiderar São João teria de pôr
em causa a sua natureza canónica). Há uma linha ininterrupta do «eros» que vai
do neoplatonismo à teologia alexandrina através de Pseudo-Dionísio, em parte
através de Santo Agostinho, Escoto Eriúgena, a mística medieval, até ao
idealismo alemão, e aos sistemas especulativos pós-kantianos (pp. 193-194).
g)
Tertuliano tende a insistir na ideia
contrária, e por isso afirma que a alma não tem natureza divina, mas corpórea
(p. 331). Clemente de Alexandria usa a expressão de Inácio que afirma que a fé
é o princípio, o amor o cumprimento (p. 358). Se Clemente usa «agape» como
apatia em relação ao mundo inferior e aspiração ao superior está em boa verdade
a seguir o «eros» (p. 360). A referência à escada de Jacob é ocasião de entrada
do «eros» (p. 372). Em Orígenes, o final coincidirá com o ponto inicial, Deus
será, como no início, tudo em tudo (p. 382), sintoma evidente de antropologia
«ex deo». No entanto, a palavra «eros» não aparece nunca no Novo Testamento (p.
387). A verdade é que Orígenes, em interpretação errada de Inácio, que diz que
crucificou o seu «eros» (o físico), vem concluir que Deus é «eros» (pp.
388-389).
h)
A análise de Nygren em relação a Santo
Ireneu é particularmente significativa. Reconhecendo que é o autor mais próximo
do cristianismo primitivo (p. 391), afirma que a sua ideia de deificação é
sintoma de presença do motivo do «eros» no seu pensamento (p. 409). Nygren
deixa-se aqui trair pela sua perspectiva protestante, ou melhor, ocidental. A
oferta de deificação é a maior oferta da «agape» divina. Um pagão não é
efectivamente deificado. Entre os autores pagãos é significativo que a
expressão usada seja a de «homoiosios». Proclamar a deificação não
implica necessariamente seguir o «eros». A deificação pode ser oferta de Deus.
i)
Esquecendo isto, afirma por isso que o
«eros» e «agape» foram fundidos (p. 411). Da mesma forma, em Santo Atanásio
considera que a descida da «agape» é a forma de subida do «eros» (p. 429). Em
São Gregório de Nyssa diz que é o motivo do «eros» que domina e não o de «agape»
(p. 433), mostrando mais uma vez a desconfiança protestante em relação ao
misticismo.
j)
A concepção agostiniana de amor cristão
foi até hoje em dia mais determinante que a de Lutero (p. 455). Com Santo
Agostinho nasce uma nova concepção de amor que não pode ser definida nem como
«eros» nem «agape», a de «caritas» (p. 456). Para ele há um acordo perfeito
entre o Antigo e o Novo Testamento, a diferença é que no Antigo há um comando
de amor, Deus exige amor, no segundo
Deus dá amor (p. 459). Partiu de uma
concepção neoplatónica do amor («eros») (p. 466) de que nunca se libertou (p.
470), porque assente no desejo (p. 507). A «caritas é «dilectio ordinata» a
«cupiditas» é «dilectio inordinata» (p. 515). A felicidade não consiste em amar
o Sumo Bem mas em possuí-lo, o que para Nygren é relativizar a «caritas», e
degradá-la em instrumento (p. 519). Mas a verdade é que tem de lembrar que para
Agostinho o homem veio do pó, e antes de ser pó nada era (p. 535), o que é um
travão a uma antropologia «ex deo»: a finalidade não é voltar à origem porque
isso seria voltar ao nada. A verdade é que insiste que o pensamento de
Agostinho está marcado pelo «eros», porque acha que a descida de Cristo tem
como meta a nossa subida (p. 538). Ligando a graça e a «caritas», obteve uma síntese
entre a primitiva concepção cristã da salvação e a soteriologia helenística,
síntese que prevaleceu na Igreja medieval; se a sua concepção da graça foi
recusada, a sua concepção de graça como «amor infuso» que torna possível a sua
ascenção até Deus foi seguida (pp. 540-541).
k)
No Pseudo-Dionísio, pela oração não
atraímos Deus a nós, mas antes elevamo-nos a Ele (p. 602). Mas a tentativa
dionisíaca de apagar o «agape» falha com João Clímaco em que no topo da escada
está o «agape» (pp. 611-612). Em Máximo, o Confessor, são tratados sem
distinção «agape», «eros», «apatheia» e «epithymia» (p. 614). A verdadeira e
profunda oposição entre a concepção evangélica e a medieval está no facto de na
segunda a graça ser essencialmente um instrumento da ascenção humana, enquanto
esta ascenção não existe na primeira (p. 639).
l)
Para São Bernardo de Clairvaux a imitação
de Cristo deve ser imitação da Sua humildade e da sua elevação (p. 651). A Idade Média teve dificuldades em
encontrar um puro amor, bem o «amor amicitiae» de São Tomás de Aquino, nem os
«quatuor gradus amoris» de Bernardo, nem a «mortificatio» da mística puderam
expulsar o «eros», apenas o puderam sublimar (p. 666). Scoto Eriúgena é dos
raros (talvez por saber grego) a ter percebido que sob a capa do «amor» se
escondia o «eros» (p. 668). São Tomás não tinha ideia da destrinça grega entre
«agape» e «eros» (p. 683). Ricardo de São Victor ignora o amor de Deus, não se
refere à «agape» (p. 670).
m)
O amor cortês, a «Minne», incorpora-se no
tema do amor cristão (p. 676). Nos conventos de religiosas, o «eros» foi
particularmente acentuado (p. 677). Por muito que no catolicismo se fale no
amor de Deus, a verdade é que o acento é dado ao amor que devemos a Deus (p.
699). A tendência medieval é definida pela tendência para o alto (p. 714),
enquanto para Lutero a única «agape» eficaz, verdadeira, é a descendente (pp.
731, 735-736), a corrente do amor vem para baixo (p. 751).
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