terça-feira, 15 de maio de 2018

O que diferencia o cristianismo das outras religiões? VI






Falta o segundo corolário: apenas o cristianismo permite uma ontologia. Ora vejamos. Um dos momentos que mais me impressionou na «Metafisica» de Aristóteles, em que ele se revela na sua personalidade, é algures quando ele dá a entender: o Uno ou o ser, como lhe queiram chamar. Percebo-lhe a irritação. Uno e ser, que embrulhada. Onde encontrar o último grau, o último fundamento? Plotino viu muito bem, melhor que outros: onde está o Uno, o ser apenas pode ser derivado. Parabéns. Bem visto.

Entra aqui a cristologia e em geral o dogma da Santíssima Trindade. Em boa verdade, os vários anti-trinitarismos, sejam pneumatómacos, arianos, eunomianos, modalistas… enfim, as várias heresias, tinham como base uma coisa: reduzir o ser ao Uno. Maomé tinha bom senso: Deus não tem associados. Mas o problema fundamental da metafísica, que Aristóteles bem sabia que era teológico, fica por resolver: se no alto fica um Uno o ser é mera derivação. Deus uno, só, fica sem ser. Obviamente pode-se imaginar um ser a este deus sem consistência lógica. Diz-se que é justo, misericordioso, como quem enche um boneco empalhado só para parecer vivo. Maomé foi aliás objecto de críticas pelos seus contemporâneos por ter inventado mais um deus, al-Rahman, o misericordioso. Mas o Uno sem ser é um animal empalhado. Pode-se encher o uno de seres e seres a gosto, apenas se tenta disfarçar um ídolo.

A ortodoxia, ao estabelecer a igualdade de três pessoas num só Deus, revela um Uno, que é ser e é relação. Golpe de mestre, ou para ser franco, bem mais que isso. É.

Dir-me-á algum leitor: mas que me interessa a ontologia? Em que a uso? Para que me interessa o ser? Pergunte-se então esse leitor se é alguma coisa.



Alexandre Brandão da Veiga






(mais)

sexta-feira, 4 de maio de 2018

O que diferencia o cristianismo das outras religiões? V



Não me esqueci. Faltam os corolários. Vejamos o primeiro: apenas o cristianismo resolve o problema do sofrimento sem lhe retirar substância.

É que no meio de todo este arrazoado pode o leitor dizer-me: e o budismo? E eu pergunto de que budismo fala o leitor? Se fala do budismo Mahayana, sobretudo o do Tibete, nada há de nu nessa religião. Toca de usar as vestes tibetanas, falar as línguas tibetanas, e seguir práticas étnicas tibetanas.

Se falar no Budismo original, o Theravāda, independentemente de ter variantes menos gloriosas como se vê pela violência do budismo birmano e do Ceilão, já falamos de outra coisa. Muitas vezes as pessoas se perguntam se o budismo é uma religião ou uma filosofia. O problema é que esta distinção só faz sentido para um cristão. Um grego bem sabia da diferença entre filosofia e religião, mas cada vez mais ao longo da Antiguidade seguir uma seita filosófica era adoptar um modo de vida. Entre os cristãos ser marxista, fenomenologista, ou idealista não muda nem as vestes nem os hábitos alimentares do sujeito.

Em suma: o budismo consegue ser nu? Sim, se deixar de ser religião. sim, se for o budismo Theravāda, o original. Mas com um custo. O de retirar substância ao sofrimento. Cada vez que olhar para uma criança em sofrimento sorria o leitor: a criança não existe, o seu sofrimento não existe, ou melhor colocar o problema da sua existência não faz sentido, faz parte da ilusão, do véu de Maya. Solução humana, muito superior à dos estoicismo e epicurismo, mas solução que tem como preço abandonar o mundo incarnado. Que seja atraente para alguns europeus, diz algo da sua incultura e da sua vontade de abandonar o corpo. São puritanos, em suma.


(mais)

quarta-feira, 2 de maio de 2018

O que diferencia o cristianismo das outras religiões? IV





Apenas o cristianismo percebeu (ou instituiu?) que a vítima é inocente. Ideia estranha. Mas não é óbvio que a vítima é inocente?, pensa o leitor. Se assim pensa, pensa como cristão. É evidente que a vítima sacrifical merece de alguma forma ser vítima. Os mártires cristãos de Córdoba para a historiografia liberal do século XIX e para actual historiografia multiculturalista mereciam ter morrido. Provocaram os muçulmanos afirmando a divindade de Jesus e a falsidade de Maomé. Mereciam morrer. São os mesmos que chamam a isso de resistência passiva, e admiram Gandhi, Mandela e Martin Luther King pelas suas provocações não violentas, que acham que a vítima não é inocente. Não é o facto de ser vítima que gera a inocência, mas o facto de haver uma pré-selecção das vítimas merecedoras de inocência. As nossas mulheres violadas são inocentes, mas as mulheres dos inimigos capturadas como escravas sexuais são uma alegria para nós e mereciam a escravidão.

Convenhamos. Seja o leitor honesto consigo mesmo. Quantas vezes não culpou a vítima? «Realmente, andar na rua àquelas horas. Era de esperar que fosse violada». «Realmente, foi aldrabado, mas se calhar teve alguma gula». Nem que seja pela imputação de imprudência, a vítima tem sempre alguma culpa. E provavelmente tem. Mas apenas um Ser na História aparece como plenamente vítima e plenamente inocente. Alimento para o espírito, diria eu. Brecha aberta no mundo, a possibilidade haver a plena inocência da uma Vítima.

Que implicações civilizacionais tem isto? Quer dizer que as civilizações cristãs se portam sempre melhor que as outras? Esperar isto é esperar a desencarnação. É desejar que os cristãos sejam anjos, ou seja, estejam fora do mundo. Quem invoca este tipo de argumentos mostra que desejava estar fora do mundo, e que o cristianismo apenas pode ser julgado caso esteja fora do mundo. Não percebeu nada do cristianismo. É a única religião incarnada e a única da Incarnação. É a única que assume em si a História, toda ela, não uma História heróica de um povo, mas a História de todo o universo.

Que implicações civilizacionais? A de o ser humano precisamente ter de se confrontar com a sua incarnação, com as suas imperfeições, com o facto de o mundo não ser de anjos. É de realismo que se trata, de enfrentar sem desculpas o que fizemos e o que os outros fizeram.


(mais)