O que diferencia o cristianismo das outras religiões? IV
Apenas
o cristianismo percebeu (ou instituiu?) que a vítima é inocente. Ideia estranha.
Mas não é óbvio que a vítima é inocente?, pensa o leitor. Se assim pensa, pensa
como cristão. É evidente que a vítima sacrifical merece de alguma forma ser vítima.
Os mártires cristãos de Córdoba para a historiografia liberal do século XIX e
para actual historiografia multiculturalista mereciam ter morrido. Provocaram
os muçulmanos afirmando a divindade de Jesus e a falsidade de Maomé. Mereciam
morrer. São os mesmos que chamam a isso de resistência passiva, e admiram Gandhi,
Mandela e Martin Luther King pelas suas provocações não violentas, que acham
que a vítima não é inocente. Não é o facto de ser vítima que gera a inocência,
mas o facto de haver uma pré-selecção das vítimas merecedoras de inocência. As nossas
mulheres violadas são inocentes, mas as mulheres dos inimigos capturadas como
escravas sexuais são uma alegria para nós e mereciam a escravidão.
Convenhamos.
Seja o leitor honesto consigo mesmo. Quantas vezes não culpou a vítima? «Realmente,
andar na rua àquelas horas. Era de esperar que fosse violada». «Realmente, foi aldrabado,
mas se calhar teve alguma gula». Nem que seja pela imputação de imprudência, a
vítima tem sempre alguma culpa. E provavelmente tem. Mas apenas um Ser na História
aparece como plenamente vítima e plenamente inocente. Alimento para o espírito,
diria eu. Brecha aberta no mundo, a possibilidade haver a plena inocência da
uma Vítima.
Que
implicações civilizacionais tem isto? Quer dizer que as civilizações cristãs se
portam sempre melhor que as outras? Esperar isto é esperar a desencarnação. É desejar
que os cristãos sejam anjos, ou seja, estejam fora do mundo. Quem invoca este
tipo de argumentos mostra que desejava estar fora do mundo, e que o cristianismo
apenas pode ser julgado caso esteja fora do mundo. Não percebeu nada do
cristianismo. É a única religião incarnada e a única da Incarnação. É a única
que assume em si a História, toda ela, não uma História heróica de um povo, mas
a História de todo o universo.
Que
implicações civilizacionais? A de o ser humano precisamente ter de se confrontar
com a sua incarnação, com as suas imperfeições, com o facto de o mundo não ser
de anjos. É de realismo que se trata, de enfrentar sem desculpas o que fizemos
e o que os outros fizeram.
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