Onde está Chateaubriand?
Já ninguém fala de Chateaubriand.
Entre esquerda e direita não há nenhuma diferença. Lêem os mesmos livros – americanos-,
vêem os mesmos filmes – americanos -, e ouvem as mesmas músicas – americanas.
Já ninguém fala de Chateaubriand,
salvo eventualmente em países francófonos e, fora deles, entre aulas de literatura,
como se um homem que representa a respiração por excelência se pudesse acoitar
em salas de aulas e em bibliotecas.
Chateaubriand foi sempre acusado
de ser contraditório. Legitimista e liberal, fiel aos Bourbon, mas conhecendo a
sua pequenez, realista, mas sabendo que os outros cultores dos reis eram frequentemente
medíocres, republicano de alma, mas monárquico de fidelidade. Tanta contradicção,
parece.
Erro absoluto. Não é Chateaubriand
que é contraditório, são a sua época e as que se lhes seguiram que exigem o arregimentamento.
Ou se está num lado, ou noutro. Homem inteiro numa época que não o é, ovelha de
Igreja, mas de mais ninguém, ajoelhava-se perante Cristo e mais ninguém. Quem
está disposto a ajoelhar-se perante qualquer um não lhe pode perdoar o facto.
Fidelidade e liberdade.
Deveria haver uma só palavra que sintetizasse estas duas ideias. Na ideologia aristocrática
dos indo-europeus talvez haja uma palavra que o faça: Arya. Uma época em que a
liberdade se acomoda com a birra e o capricho e a fidelidade com a submissão e
o alistamento quem pode compreender Chateaubriand?
Na sua época, havia uma
pessoa talvez. Madame Récamier. A grande beleza da época, provocando paixões em
príncipes, banqueiros, generais e escritores, poucas mulheres fascinaram como
ela. Poucos salientaram, no entanto, o que tinha de comum com Chateaubriand. A
mesma fidelidade aos humilhados, a mesma empatia com a desgraça, a mesma constância
sem espírito de partido.
Uma grande nobreza e uma
grande beleza tocam-se no fundo numa época de gente com o dito sentido prático,
ou melhor, em que o sentido prático, o justo meio, a moderação, é apenas uma
forma de compromisso e acomodamento.
Chateaubriand está longe
de ser contraditório. Como na «Ilustre Casa de Ramires» de Eça de Queirós,
Ramires é da antiga nobreza que nada deve ao rei. Chateaubriand nasceu nobre,
nada devia aos reis de França. A sua fidelidade era uma dívida que tinha, não
aos reis, mas a si mesmo. A sua liberdade era um dever que tinha, não contra os
reis ou as repúblicas, mas em relação a
si mesmo. Pertencia a uma raça que se sentia grande, não dependente de concessões,
de cargos pedidos ou suplicados, de posições sociais desmerecidas, tanto quanto
foram fruto apenas de trabalho eventualmente, mas não de postura.
Grande de nascimento, não
carecia de mais nada. Nem títulos, nem riqueza, nem súplicas. De glória, sim.
Mas porque essa é a necessidade da alma grande que precisa de expansão, de ir
além de si mesma. A mesma vontade de dominação de Platão, a mesma derrocada de projectos.
Chateaubriand não é um
grande escritor por andar a cuidar do metro ou do efeito. É quando os descuida
que se revela. Como Schiller dizia, a alma pequena, o melhor que tem a fazer é
tentar ser um poeta sentimental e não ingénuo, porque tem todo o interesse em
esconder a sua asquerosa natureza.
Uma alma que se despe em
público o mais natural é que repugne. Apenas se pode dar a esse luxo quem tem
grandeza e deslumbramentos a fornecer. É privilégio dado a poucos. Não é a esbirra
do regime, o delator da situação, o sedutor do poder que pode entrar pela porta
principal do mundo. Nascidos no refugo, apenas podem ambicionar mais tarde ou
mais cedo uma saída pela porta dos fundos.
Chateaubriand é um imenso
escritor porque a literatura sai-lhe naturalmente, sem discussão literária. A gramática
tem com ele tal intimidade que lhe permite encontrões. São amantes e ela deixa.
Sabe que ele até isso sabe fazer com elegância. As mulheres, como a gramática,
aceitam a força a alguns. Muito poucos. Os que elas sabem que, até forçando, sabem
respeitar. Não tente o comum o que cabe apenas a poucos.
Imenso escritor, porque imenso
ser humano. Uma incarnação. Do aristocrata, que mesmo na miséria em Londres, ou
no despojamento na selva do Novo Mundo, se distingue. Comovente como apenas o sabe
ser quem não mendiga a empatia. Exacto como apenas o é quem o sabe ser com displicência.
Um familiar, a muitos títulos.
Como se dizia antigamente: um primo. Tanto melhor. Para quem pode. Procura, porque
tem a única boa razão para procurar: sabe que existe a verdade. Inteiro e incompleto,
porque sabe que o segundo estado é uma inevitabilidade da sua condição humana e
o primeiro um elevado dever perante si mesmo. Grande porque esse é um dom
divino dado a poucos. Humano, porque sabe que esse é um estado necessário para
se ambicionar a perfeição.
Já ninguém fala de Chateaubriand?
Porquê? A resposta é fácil. Os espécimes ambulantes que ocupam o espaço público
não gostam de ser confrontados com a grandeza. A comparação ofusca-os, ofende-os,
obriga-os a revistar a sua pequenez, apaga-lhes as ilusões da ribalta.
Deixemo-los, pois, falar. Além-túmulo, a sua voz apagar-se-á. Enquanto a de Chateaubriand
apenas se levanta com mais força. A arte do epitáfio era cultivada pelos gregos
e romanos e foi cultivada pelos nossos antepassados medievais com arte.
Dirigia-se muitas vezes aos transeuntes. As suas «Memórias de Além-Túmulo» não
são uma epopeia, nem um romance. São o cume da arte do epitáfio. O que não espera
pelos passantes, mas se lança pelo mundo como um espectro, assombrando os medíocres
e consolando os que sabem que a grandeza é possível.
Alexandre Brandão da
Veiga
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