Que modelo de homem gera a urbe?
Quando
as crianças aprendem algo sobre a urbanização, e se falo de crianças é porque é
esse o estalão cultural do actual homem público, aprendem coisas muito simples.
Antes o homem vivia no campo e depois passou a viver na cidade. Ficou mais
culto, largou o campo e assim acabou a História. Como neste momento pretendo
falar entre adultos, temo bem que tenhamos de pôr alguma complexidade na coisa.
O homem
que faz a cidade, e não apenas o que nela vive, é sempre um homem duplamente ancorado. Na cidade e na
terra. E liga-se à terra de uma dupla ou mesmo tripla forma: na cidade pelo
jardim, nos seus limites pela horta limítrofe, longe dela pelo campo, seja ele
o latifundium, a propriedade na Ática,
o solar, o feudo ou a quinta. Este aspecto é fundamental para se perceber o que
é o homem urbanizado no seu sentido nobre. É o que acrescentou algo à sua vida
e não apenas substituiu. A sua vida enriqueceu-se por uma dupla experiência,
não resulta de uma mera translação.
Este
homem duplamente ancorado conhece os ciclos da natureza e as variações da
cidade, a dureza do campo bem como as suas delícias, e a agressão da cidade bem
como os seus prazeres. Tende a ser realista, maduro, curioso, capaz do confronto,
da comparação. É adulto em suma. A lista é infinda destes seres duplamente
ancorados. De Séneca a Montaigne, de Madame de Sévignée a Bismarck, de
Churchill a de Gaulle, de Plínio a Henri IV.
O que
hoje em dia constitui o homem da cidade, de onde se vão recrutar os homens
públicos, é de uma espécie bem diversa. É um transmigrado. Nem criador da
cidade, que apenas herdou para seu usufruto, nem ligado ao campo, porque os
seus antepassados foram dele escorraçados sobretudo por razões económicas. É
deste homem que decide em política hoje em dia que temos de curar.
Em
primeiro lugar é um homem que vive num mundo mágico, quando se julga racional. Aliás a racionalidade é apenas
mais um dos seus mitos. Quantos deles conhecem os princípios de funcionamento de
um telemóvel, de um computador, de um carro? Quantos deles conhecem os
mecanismos patológicos ou a teoria das áreas monetárias óptimas? Fruem de um
mundo cuja complexidade não apenas ignoram mas da qual nem sequer desconfiam.
Em
segundo lugar, vive numa total dependência
do colectivo quando se julga
individualista. Outro dos seus mitos. “Nós hoje sabemos... antes não se sabia”.
Esse o seu moto. É que compensa a sua total ignorância do mundo que o rodeia
com o facto de o mundo que colectivamente o rodeia já o saber. É um homem
demitido, que se demite da sua função de conhecer porque alguém o faz por ele. Dependente
pelo conhecimento, é-o igualmente para a sua sobrevivência. Para que possa
viver em agregados cada vez maiores, imensas torres de Babel cujo funcionamento
global já ninguém pode perceber, depende de estruturas sanitárias, de
comunicação, de alimentação, de circulação de bens que lhe escapam totalmente.
Mais uma vez o espírito mágico, primitivo entra pela sua vida. O frango aparece
já preparado no supermercado, o medicamento em drageias, o serviço bancário na
Internet. O mundo não é algo que lhe aparece, é algo que lhe cai em cima. Deixou
de ser um caído para passar a ser alvo de quedas.
Vive no medo quando
se julga feliz. Desconhecendo e sendo dependente de um colectivo, flutuando em
mediações cujos mecanismos desconhece, acaba por ter medo de tudo. Do SIDA, da
gripe das aves, da mudança climática, dos terrorismos. Todos esses problemas
comungam de uma mesma natureza. São interrupções de uma vida permanentemente
bem regulada. Deixando a vida de ser assumida como problema e como tragédia no
seu todo, qualquer irrupção da vida no seu quotidiano é considerado como
problema e como tragédia. O problema deixa de ser vida para ser apenas interrupção. Nisso os terroristas, que
desprezam os europeus, bem perceberam sem serem teóricos, a fragilidade das sociedades
europeias. E como estas não se podem no estado actual arvorar-se em paradigmas.
Instilam o medo, porque sabem que o medo surge facilmente. Basta pôr em causa o
quotidiano. Se bem se reparar é nessa base que trabalha o terrorismo. Na
contestação do quotidiano. Andar de avião, de metro, de comboio passa a ser
aventura, a poder ser tragédia. Tem medo da velhice, da morte, da decadência,
de engordar, de ser infeliz no amor. Sentindo falsamente que a sobrevivência
está garantida, dissipa-se no luxo, enfada-se. E enfada os outros.
É um
homem infantilizado. Acha que acabar com o SIDA e apenas uma questão de pôr mais
dinheiro para a investigação, porque ignora quais os mecanismos da
investigação. Não estudou nada sobre investigação científica, a palavra topologia
cheira-lhe a uma marca de design, mas
tem tudo a dizer sobre a inutilidade de experiências sobre os animais. Olha com
condescendência os seus antepassados camponeses, mas acredita na força mítica
do Direito Internacional, na vontade de paz dos povos e em que, caso todos os
povos tenham o seu paradigma de vida, tudo ficará bem no mundo. No fundo nem
lhe passa pela cabeça que assim como é invejado pelo seu nível de vida é
desprezado pela sua falta de noção de aventura, ou seja de vida.
É um
idólatra do desconhecido. Sendo acima de tudo desconhecedor, é idólatra de quase tudo. Das outras
culturas, porque presume conhecer a sua, o que está longe de ser verdade. Da
natureza, porque foi dela desenraizado e esquece que o SIDA, as epidemias, as
tempestades, os furacões, são igualmente natureza. Como todos os idólatras,
julga que a melhor forma de se entregar ao ídolo é amando-o, mesmo que este lhe
faça mal.
O
verdadeiro homem urbano é o homem duplamente ancorado: no campo e na cidade. O
actual homem urbanizado só por generosidade pode ser assim chamado. Em boa
verdade não é de urbanização geral que falamos. O que caracteriza a nossa época
é uma suburbanização geral. À roda do mundo não se estão a gerar grandes
cidades, geradoras de acção política específica, de criação cultural profunda e
de actuação sentimental inovatória. O que se está a criar no mundo é um imenso
enxame de subúrbios, cidades que são em si mesmo subúrbios, mais que sem centro
físico, sem centro espiritual. Do homem duplamente ancorado passamos aos poucos
para o homem sem âncora. De duplamente achado, para duplamente perdido. Sem
ligação ao campo e sem real ligação à cidade.
Que
consequências traz este fenómeno para o espaço público? Em que interessa esta análise
para a compreensão da política, e do discurso político actuais? É que o paradigma
do suburbano é o comentador desportivo. A criticar tem visibilidade, não por
ser marcante como pessoa, mas porque é popular o objecto sobre que se debruça,
e porque os rituais consagram a sua viabilidade. É um homem ancorado apenas à
sua existência visível. Dedica-se a temas cuja compreensão é elementar e deles
faz aparato de arcana sabedoria. Mas o paradigma é o do comentador desportivo
também porque na sua maioria discursa sobre um objecto para o qual lhe falta
configuração atlética para agir. Muita da classe política hoje em dia sendo
barriguda, diz-se desportista. Julgando-se homens de acção, reduzem-se a ser espectadores
e a comentar, como se fosse seu papel dissertar, e como se a sua verve
claudicante fosse o estalão do próprio agir.
O homem
da suburbe não possui conhecendo mas comprando.
Compra bilhetes de avião, mesmo que não tenha ouvido falar de Bernoulli. Porque
voa o avião irreleva-lhes, quando deveria saber que a pergunta sobre as causas
é o que lhe permite andar de avião. Sendo a sua forma de posse a mera compra,
em pura magia de contacto, acha que atirar dinheiro resolve os problemas do
mundo. Julga que pode comprar a paz. O bárbaro não tem de ser disciplinado, mas
apenas comprado. O seu instrumento é o contrato e não a ordem, mesmo que o
contrato tenha de ser indigno e a negociação aviltante.
A
decisão política fica assim vertida em mero comentário de banalidades. O político
faz de conta que declara, quando deveria ser sua função determinar. Abre-se ao
diálogo e pede desculpa por decidir. A decisão é amolecida por uma retórica de
doçura, de tolerância, que é apenas defesa para a sua falta de escoramento. Quem
não tem de onde venha não tem para onde ir. O homem urbano tem mais de um ponto
de vista. O suburbano na política, está apenas de passagem. Não tem pontos de
vista: apenas vê de relance.
Alexandre Brandão da Veiga
2 comentários:
Permita-me reforçar a ideia destes homens políticos que revisitavam há dias grandes painéis sobre o 25 de Abril. Foi um momento fantástico, observá-los a promover a democracia que anda fugidia desses meandros do snobismo intelectual.
BRILHANTE! Um dos melhores bloggers de Portugal
http://www.maquinadelavax.blogspot.pt/2014/05/o-n-do-nosso-esquecimento.html
[...] Eu corro sérios riscos de ganhar o Lamborghini. Digo riscos porque, se a mudança para um apartamento melhor muda mais seguramente as ideias e filosofia de um homem do que o estudo e assimilação das obras, por exemplo, de Emanuel Kant ou Carlos Marx, segundo o nosso Millor Fernandes, que fará a mudança de carro para um Lamborghini? Decerto, nada menos que, esta sim, um revolução coperniciana na vida do premiado, com todas as consequências advindas de uma nova visão do mundo, – mundividência, ou melhor, Weltanschauung, como a classificariam os ditos Emanuel e Carlos.
E porque eu cá nunca peço factura: quando me lembram o exercício, recuso enfática e veementemente.
Assistem-me duas boas razões, que me apraz compartir convosco, amigos: estou-me ninando para o número de contribuinte (pela cartilha oficial, o número de identificação fiscal! Mais pompa no chamadouro só a Pompadour, convenhamos). Se uma criatura se empenhasse em decorar a colecção de senhas reputadas por imprescindíveis na vida moderna – que, diga-se de passo, tem mais de moderna que de vida – estaria codilhada: antes decorar os rios de Angola. Não se nos depara geringonça que não traga ajoujada a sua senha, do telelé ao multibanco, passando pela área de trabalho, até ao cartão de leitor da Bertrand!
Essa singela palavrinha, «senha», daria pábulo a mais um artigo a locupletar o Nacional e Transmissível do nosso saudoso EPC, pensador a tempo inteiro, e que nesse opúsculo coleccionou uns quantos gostos e desgostos, manias ou tiques pátrios, desde o pastel de nata a Fernando Pessoa. Realmente, já reparastes, amigos, em que raro topais alguém que a use? [...]
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