sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A aristocracia é necessária?

Por vezes há alguma tendência a condenar os lugares comuns só por o serem. Ora o que condena um lugar não é a sua natureza comum, mas a sua injustiça. Se são com frequência condenáveis é porque a injustiça é com frequência muito comum. Mas existem lugares comuns cuja valia se percebe melhor quando desaparecem, quando o deixam de ser.

Era lugar comum citar a tese de Políbio quando este afirmava que a origem da excelência e do poder do sistema romano se encontrava no facto de conciliar democracia, aristocracia e monarquia. Todos os sistemas equilibrados, se bem repararmos, distribuem de forma equitativa o poder entre todos, alguns e um só. O poder do presidente da república não é igual ao do merceeiro da esquina, o poder da massa da população não é igual ao dos que vivem nos vários círculos de decisão. É assim em todas as comunidades, a questão é a de saber em que graus e com que justiça se distribuem esses poderes.


A aristocracia não é apenas um conceito de poder. Nem um conceito quantitativo. É qualitativo. É o poder dos melhores. Não vou discutir a questão de saber se tem de haver a formação de novas aristocracias. Nem sequer directamente o papel das tradicionais aristocracias hereditárias. Aquilo que quero salientar é a própria importância da ideia de aristocracia numa sociedade, que papel pode desempenhar.


Uma sociedade não vive apenas quatro ou cinco anos. Uma das técnicas de limitação do poder é a sua limitação temporal. Mandatos limitados no tempo, prescrições, toda a técnica do Direito Público desemboca de uma forma ou de outra nas limitações temporais do poder. Facto positivo. Mas nada na vida é só positivo. O perigo deste sistema é o da impermanência. O do império da impermanência. Nada existe que não influencie de uma forma ou de outra o longo prazo. E o mais importante só nele se instala. Quando se fala em reformas estruturais e da incapacidade de muitas democracias de as fazerem é desta incompatibilidade entre mandato (poder) e tempo (serviço) que se fala. Entre o melhor e o mais eficaz a curto prazo opta-se pelo segundo.


Os economistas têm vindo a analisar a influência dos ciclos eleitorais na gestão da economia. Mas os ciclos eleitorais têm influências muito mais vastas. Na educação, na saúde, na justiça social, existe sempre a tentação de sacrificar ao curto prazo o que deveria ser feito no longo.


Aristocracia não é só governo dos melhores, mas governo pelo melhor. E o melhor é por definição um projecto inatingível na modalidade e no tempo. O aristocrata projecta-se assim sempre no infinito e na eternidade. O que faz é com frequência absurdo para a sua vida, para o pequeno espaço de tempo. Porque a sua meta não obedece a ciclos de poder.


Damos como evidente associar aristocracia a hereditariedade. Esse é mais um dos aspectos que demonstra o nosso etnocentrismo e a dimensão pagã da civilização europeia. Não se encontra no cristianismo nada que justifique uma aristocracia hereditária. E no entanto, a Europa foi governada mais de 1400 anos por esse sistema. É evidente que em todos os sistemas há tendência à reprodução das desigualdades sociais, tendência maior ou menor. O filho do burguês tem sempre mais hipóteses de vencer que o do proletário. Mas a hereditariedade como factor de posição social é típica do paganismo, sobretudo o indo-europeu. Platão era nobre porque descendente de Codro, rei de Atenas, Heraclito era “rei”, Júlio César porque descendente de Iulus, filho de Vénus, os sistemas de poder germânicos e celtas, embora não baseados na primogenitura, eram baseados na descendência.


Em países não europeus, como a Turquia e a China, nada disto se passa. Um escravo passa a grão-vizir, o mandarim pode ser filho do pobre. Mais uma vez saliento: a tendência para a reprodução de desigualdades sociais existe sempre. Mas a hereditariedade como fundamento não existe. Na China eram nobilitados os ascendentes quando o era alguém, não forçosamente os descendentes. Ao contrário do que se pensa, a hereditariedade contribuiu para a atenuação de desigualdades sociais e não o contrário. Nunca como nos regimes orientais foi tão escandalosa a má distribuição de riqueza. Nunca como no capitalismo.


A perenidade no tempo pode ser incarnada por uma ideia transmitida de múltiplas formas. Assim fizeram as repúblicas. Mas a verdade é que os mitos de continuidade que criaram foram sempre frágeis a longo prazo sem aristocracias. A república romana vive da sua aristocracia, mesmo que absorvendo novos membros. A democracia ateniense tem como patronos aristocratas (Sólon, Clístenes, Péricles) a república francesa mais longeva nasce da aceitação de padrões aristocráticos. Portugal, república durante 90 anos, ainda tem horror ao verde e encarnado como de mau gosto, apesar de ser de bom tom em Itália.


Os aristocratas não são melhores que os outros a fazer coisas, nem mais inteligentes, nem mais estúpidos. Mas foram sempre melhores a escolher coisas. Escolheram Mozart e Beethoven, e mesmo Strawinski. Projectando-se no eterno, não têm de fazer escolhas para agradar no curto prazo. Podem-se dar ao luxo de proteger Molière contra a vontade dos pudibundos.

E são melhores nos modos. Quem apenas luta para sobreviver ou para subir tem menos tempo para o modo. Se a opção é entre comer ou não comer apenas se discute do sim e do não. Quem carece de subir na sociedade usa o modo como instrumento, mas não como postura.


Infinitivos, modos, optativos. Categorias gramaticais que se esvaem na nossa época. Categorias gramaticais que mostram a riqueza de perspectivas de vida que a aristocracia nos trouxe. As nossas línguas indo-europeias, tanto quanto a erudição o pode retraçar, são línguas aristocráticas, enriquecidas pela aristocracia.


O que se perde com a perda da aristocracia? Não a comida, que abunda. Não a saúde, que é medicalizada. Nem forçosamente a ligação à vida, porque o povo também a tem. O que se perde é tão simplesmente a possibilidade de viver a vida em civilização. Civilização e vida opõem-se sem aristocracia. É quando esta perde o poder que se percebe a sua oposição. Antes uma era consequência de outra.


Daí que o perigo na política seja o de se ter de optar hoje em dia entre uma ou outra. Na melhor das hipóteses. Porque se corre o risco de perder ambas. Os homens públicos já são destituídos de civilização, e muito menos a incarnam. A sua ligação à vida é mediatizada e não serve de paradigma. O grave ainda está para vir. É que se identificam com o mundo que os rodeia, porque esse mundo está cada vez mais como eles. Sem seiva, sem infinitivo, nem modo, sem optativos. Apenas um indicativo, um presente fugaz, um pequeno futuro, um pretérito estreito. A redução gramatical está na medida da redução da vida possível. Ou seja, não vai além do simplesmente indicativo. Ignora a possibilidade, a alternativa e a escolha. Sem civilização pode florescer o selvagem. Nela, sem aristocracia, impera o mendigo da vida. É esse que nos aparece nas televisões.


Alexandre Brandão da Veiga

9 comentários:

maria lisboa....... disse...

Li com atenção o que escreveu, aliás como todos os seus post. Desta vez não posso deixar de comentar algumas passagens. Diz a certa altura que “O poder do presidente da república não é igual ao do merceeiro da esquina, o poder da massa da população não é igual ao dos que vivem nos vários círculos de decisão.” Certamente pensa que é superior mas está errado. Em democracia eles só têm o poder que os que o votam lhes dão e é passageiro, limitado. Sócrates governou pessimamente durante 6 anos, certo? Onde está? Que poder de decisão tem agora? Que pode fazer para parar o que não lhe interesse agora? Isto é um exemplo. Claro. Depois diz que “A aristocracia não é apenas um conceito de poder. Nem um conceito quantitativo. É qualitativo. É o poder dos melhores” O que é realmente a aristocracia? Um poder? Dos melhores? Quais melhores? Os que herdaram um nome ou título? Ou até um Reino? Melhores em quê? Na forma como gastam dinheiro, certamente.
E continua….” Aristocracia não é só governo dos melhores, mas governo pelo melhor. E o melhor é por definição um projecto inatingível na modalidade e no tempo”
Olhando o mundo “antigo” e actual, a mesmíssima história não pode discordar mais com esta frase……………..
Uma pergunta? Quem governa a Europa agora mesmo? Perfumes misturados? Como estamos neste momento do começo do século XXI?
Há décadas que não estávamos tão mal socioeconomicamente falando.
E relembro algumas coisas para pensar.
Em Portugal inventou-se um rei em 1640 para afastar os herdeiros legítimos da coroa.
Portugal fez mais de um século de república, estamos em 2012 praticamente, não 90 anos.
Em relação aos aristocratas. Não são melhores a escolher nada, simplesmente estão em situação de o fazer. Basta ter dinheiro para aceder e até comprar a aristocracia. Os novos-ricos até compram títulos. No Reino Unido até estão à venda na Internet. Alguns até baratos. São Carlos está cheio de jóias e peles de gente que nem sabe o que é um Soprano ou um Contralto. Na rua ficam muitos que entendem e gostam realmente de Ópera e não têm dinheiro para ir vê-la ao vivo..
Não concordo em absoluto que a civilização dependa da aristocracia, muito pelo contrário. As grandes revoluções foram sempre feitas na rua ou por “mendigos” como os chama.
Ainda hoje é assim. Veja o que está a acontecer no mundo Árabe. Foram eles que começaram tudo dando o sangue na rua. Só depois apareceram os Vampiros que nas grutas esperam para poder atacar. Em muitos países como Síria e Coreia, os sanguinários que os governam herdaram dos seus pais o poder como se monarcas absolutistas. E veja o que deu. Miséria eterna…

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Agradeço o seu comentário. O problema é que para lhe responder prescisava de um outro (longo) post. Em suma só há aristicracia havendo narrativa épica e essa pressupõe uma ideia de dinastia. os regimes dictatoriais que refere são exactamente o que os gregos chamvam de tirania, porque são de base plebeia. Vide a Coreia do Norte. Não basta a hereditariedade. Genética sem épica é apenas grosseria.

maria lisboa....... disse...

Henrique VIII de Inglaterra, aparte de louco e assassino como poucos houve na História era o quê realmente? E a filha bastarda(íssima)Isabel?
Na corte de Versalhes iam dois pajens abrindo janelas à frente quando o Rei passava pelos corredores e outros dois fechando depois porque o cheiro que o homem tinha era "inaguentável".
As perucas eram escolhidas pelas que tinham “menos piolhos”.
A aristocracia era na sua maioria podre e porca. Quem lhes dava a sublime arte eram Músicos, Compositores, Poetas, Pintores. A cultura geralmente o clero.
Penso não estar a dizer nenhum disparate. Ou o que tenho lido ao longo da vida deve ser queimado então.
A cultura antropológica duma nação é o povo que a “inventa”. Não os “Senhores”. Olhe o exemplo do Fado. “Embuçado nota bem que hoje não fique ninguêm, embuçado nesta sala….e era el-rei de Portugal houve beija mão real e depois cantou-se o Fado”…Iam embuçados..pois era… “Hoje” Teresinhas de Noronha cantavam o dito.
Entende Alexandre? Eu compreendo o seu raciocínio só que não concordo com ele.
Penso que se encontra muita "aristocracia" na plebe e muita "plebe" na aristocracia.
Nunca o hábito fez o monge e quando a genética é má os filhos têm severos problemas físicos e mentais seja em que família fôr.
Sabia que George Bush filho tem como “avô” D. Afonso Henriques?
Pois…. eu também ia morrendo quando li que está na árvore do homem mais “plebeu” da história de todos os Presidentes dos USA.
O mais bronco, mas estúpido e mais inculto.
Complicada a coisa………………………………………

Táxi Pluvioso disse...

Muito necessária para dar matéria às revistas do social.

BOM NATAL

maria lisboa....... disse...

Pois é isso mesmo :)
Bom Ano Novo a todos e um beijo muito especial à queridíssima Inez Dentinho que não só é uma mulher distinta como escreve como poucas.

José Gonçalves Cravinho disse...

Reforçando o comentário de maria lisboa,eu cito aqui trêss quadras
do poeta popular Aleixo,filho da
Plebe como eu e que escrevia português com alguns êrros mas tinha muita perspicácia e espírito de análise.

«Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado,
sou apenas um produto,
do meio em que fui criado».

«Sei que pareço um ladrão,
mas há outros que eu conheço,
que sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço».

«Se o hábito faz o monge,
e se o Mundo se quer iludido,
o que dirá quem vê de longe,
um gatuno bem vestido?!»

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Peço desculpa por não ter dado resposta ao comentário. Muot haveria a dizer:
a) em primeiro lugar Luis XIV tomava banho todos os dias com alcool e tirava o chapéu quanto se deparava com as criadas - há mitos urbanos que custam a sair (ver Mathieu da Vinha, Les Valets De Chambre de Louis XIV)
b) em segundo lugar Newton era histérico, Dirac autista, Heraclito deixou-se morrer chafurdando na lama, Platão dominador, Beethoven irascível... o mesmo argumento levaria a abdicarmos destes homens todos e ficarmos com... gestores prudentes, o homem meão de António Sardinha. Foi esse o argumento que sustentou o integralimso lusitano e posteriormente Salazar. Nós não temos génios nem loucos, apenas homens sensatos.

c) Os crimes cometidos pelo povo são igualmente muitos, basta pensar nas Erínias como Machalda di Scaletta entre outras. A ideia de uma suprioridade morla d aplebe parece-me pouco assente na´História.

peço desculpa por este comentário tão telegráfico.

maria lisboa....... disse...

Mas eu concordo consigo.
Aliás disse tudo na frase "Nunca o hábito fez o monge e quando a genética é má os filhos têm severos problemas físicos e mentais seja em que família fôr."
E rematei "Penso que se encontra muita "aristocracia" na plebe e muita "plebe" na aristocracia."
Afinal chegamos todos à mesma conclusão!!!

Anónimo disse...

Em Portugal até a vendedora de hortaliça é "ancien régime" e descendente directa (por todos os costados) de Maria Antonieta ou de Catarina, a Grande...