domingo, 28 de agosto de 2011

Porquê Beethoven está fora de moda?

Ao longo de todo o século XIX os grandes mestres incensaram a Beethoven. Seja Schumann, seja Wagner, perguntassem-lhes sobre o seu maior mestre, Beethoven aparecia logo na primeira linha. Até aos anos de 1960 assim acontecia com o grande público, que anda atrasado por definição, quando é certo que desde o fim do século XIX já havia quem, como Brahms, escolhia Bach para esse lugar.



Não se trata aqui se de saber quem é o maior músico, até porque esta obsessão de podia é profundamente imbecil. A partir de um certo grau parece-me que não tem sentido dizer quem é o maior. Se Dante ou Homero ou Camões, se Bach, Mozart ou Beethoven, se Gauss, Poincaré ou Leibniz, se Rafael, Da Vinci ou Rembrandt... A obsessão dos pódios mostra até que ponto a nossa época é unilateral; nada diz sobre o objecto do seu juízo, mas apenas sobre a falta de justiça do mesmo.



O relevante para o que me interessa é bem diverso. A que estado de espírito corresponde este fenecimento relativo de Beethoven? E que relevância tem isso no espaço público, que nos pode dizer nomeadamente sobre a política, e o que, e mais uma vez, subtende à política?



Beethoven era um compositor de palavra. O seu amor ao texto escrito manifestava-se no seu amor à obra de Goethe, nomeadamente. Mais, mais ainda, conta-se que registava ideias musicais em palavras. Quem ouve as suas obras facilmente verifica que são dialécticas, seja o piano a dialogar com a orquestra (banal no género, pode-se contra-argumentar, mas forte em Beethoven como em poucos). As peças para piano são diálogos, outras vezes conversas, outras reflexões isoladas, mas em que o isolamento existe porque alguém de afastou do grupo, não porque esteja originariamente só, ou outras vezes ainda fortíssimas discussões. A palavra tem de tal forma força na sua obra que irrompe da Nona Sinfonia. Suprema heresia, a forma sonata por excelência, a sinfonia, transforma-se em cantata. Isto apenas para fazer vir ao de cima palavras.



Mas Beethoven é também o homem que traz o sentimento para a música. Não que antes ela fosse dele destituída. Mas dá-lhe o mesmo valor que à regra pela primeira vez de forma consistente. Equilíbrio extremamente difícil entre pensamento e razão, a obra de Beethoven apela para o homem completo, para o homem na sua totalidade.


Afirmadas estas premissas qualquer pessoa pode já começar a perceber as conclusões. Um mundo da palavra e um mundo onde o sentimento é diferenciado, onde manifesta a sua glória sem abdicar da razão, é tudo o contrário do que vemos na nossa época.


A palavra descurada?, perguntarão uns chocados. Mas nunca época como a nossa viu teorizar a palavra, o discurso, a retórica, a lógica, a linguagem. Sem dúvida. É que, depois de martirizada, qualquer realidade não passa para o mundo do inexistente, mas refugia-se onde menos se espera. O homem antigo confiava na palavra, a política era por ela regida. A vida da Europa foi regida pela palavra durante quase toda a sua existência (e pela imagem). No mito babilónico Marduk mata a deusa Tiamat e dos restos do seu corpo morto faz o mundo. A palavra invade obsessivamente o nosso espaço, seja na linguística, na antropologia, na filosofia. Mas é uma palavra morta despedaçada, mais obra da mão do anatomista que da do amante.



Basta fazer a experiência de ir a um chat na Internet. Numa sociedade que se diz de imagem, que destronaria a palavra, mostra-se a necessidade de palavra na nossa época... e a incapacidade de a vivificar. Os discursos são repetidos, entrecortados, boa parte deles gastos apenas para fazer contacto entre as pessoas. Tentei várias vez ir a chats de política, filosofia, arte, dos mais variados. Verifiquei que não há uma ideia que neles circule, se não quando muito uma ânsia de auto-sagração por certos temas, ou quando muito uma curiosidade insatisfeita, mas que nem tem o mínimo vislumbre de como se começar a satisfazer. Falta de método, por outras palavras. Falta de cultura.



Um mundo em que a palavra é meramente funcionalizada, em que a mensagem foi substituída pelo slogan, em que o paradigma da comunicação é o discurso publicitário, falho de demonstração, não apenas pela sua ausência, como pelo desconhecimento da sua necessidade. Convence-se ainda, mas não demonstrando, não enchendo corações, mas motivando meros comportamentos, simples actos.



O estertor da palavra surge da fanática separação do espaço público e privado, como se o ser humano se pudesse reduzir a uma solução que é funcionalmente útil, mas essencialmente limitadora. A palavra já não vivifica, é um mero instrumento, uma máquina. Se compararmos os textos de análise política de um Burke, de um Tocqueville ou de um Maistre com os actuais vemos que um mundo os separa. Não em maior lucidez, mas de menor estilo. O estertor da palavra é também o do estilo.



Mas igualmente o sentimento está na mó de baixo. O sentimento admissível é público, pré-formatado, um mero produto industrial. O que se deve amar ou não está previamente definido. Amam-se: as culturas não europeias, os esfomeados, as lutas ecológicas, (certas) minorias. Odeiam-se: o elitismo, a procura de excelência, o auto-aperfeiçoamento, a correcção, a crítica à mediocridade.



O cristianismo criou a civilização mais diferenciada sob o ponto de vista sentimental que o mundo já viu. Esta diferenciação tem por fonte o “ama os teus inimigos” e o “ama o teu próximo como te amas a ti mesmo”. Sentimentos que nos parecem “naturais” são o resultado de séculos de difícil elaboração, auto-reflexão, de dolorosas lutas internas e públicas.


Voltemos pois a Beethoven. Numa cultura que disseca a palavra como se faz a um morto, e que a usa como cabedal de sapato, o diálogo verdadeiro torna-se impossível. Os debates passam a ser feito de marchantes atirando-se nacos de cadáveres, como se a deusa Tiamat não tivesse um Marduk que ordenasse os seus despojos. Os deuses já não são cruéis, mas não são nem sequer ordenadores. Numa cultura que está cansada de sentimento, o que dele sobra é industrializado no espaço público. O sentimento apenas é suportável porque devidamente acondicionado.



É compreensível. O espaço público está repleto de pessoas em que o convívio com a palavra complexa não foi aprendido em casa, mas na escola. Não estão habituados a associar a palavra rica ao amor. Da mesma forma, recrutados de classes muito baixas, as suas memórias são as da distante contemplação de classes altas de racionavam a sua manifestação de sentimentos. Confundem assim a aristocracia com a inexistência de sentimentos, equívoco de camponês mal informado.



Beethoven está fora de moda? Sem dúvida. Para quem queria a nobilitação do ser humano deveria ser cruel ver um mundo em que até a nobreza se plebeizou. Um mundo plebeu, dominado por plebeus, de sangue, de alma, de sentimentos é sempre um mundo sem espaço para a palavra ou o sentimento. Subiram por uma escada de esforço e é com ar de esforço de manifestam qualquer elevação.



Fora de moda? É certo. Porque quem não incarna regras, sempre que quer mostrar sentimento apenas mostra cacofonia e quando quer usar a palavra desconhece a noção de harmonia.



Fora de moda, não obstante. Não caduco. Chanel dizia que a moda é o que passa de moda. Sendo a História mais justa do que se crê, o seu retorno será particularmente cruel para os Metternich do politicamente correcto, os amantes serôdios de Congresso de Viena hoje em dia mais mal vestidos e mal falantes. E o regresso virá. Sempre mais tarde do que se deseja, mas sempre mais cedo do que os beneficiados julgam.




Alexandre Brandão da Veiga

2 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Até ao Chuck Berry Beethoven ainda deu. boa semana

Um brasileiro disse...

Olá. Tudo blz? Estive aqui dando uma olhada. Legal. Apareça por la. Abraços.