segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A revelação









A indigência antropológica sobeja na época. A distinção que ouvimos referir com frequência é a de que as religiões antigas não eram reveladas, que para um grego ou romano seria estranho o conceito de revelação, e eis que aparece o cristianismo que muda este panorama e passamos a ter uma religião revelada.

Como todas as simplificações tem uma ponta de verdade, mas rapidamente acaba na caricatura e consequentemente na injustiça. Onde estão as injustiças desta visão?

Em primeiro lugar por crer que não há lugar para a revelação nas religiões antigas. Em segundo lugar por entender que o cristianismo é só revelação. Em terceiro lugar, por entender que a revelação tem algo de passivo e limitador.

Quando pensamos nos filósofos antigos, e sobretudo nos pré-socráticos, o mundo é apreendido em grande medida por revelação. Aletheia tem um privativo: a-letheia. Des-velar. Tirar o véu. Mas se esta ideia de verdade tem uma dimensão activa (alguém que tira o véu) tem igualmente uma dimensão passiva (a realidade que se despe perante nós). Nos oráculos não se revelam apenas destinos, os deuses revelam-se igualmente. O que pede Sémele na sua loucura é que Zeus se revele. É sempre perigosa a revelação de um deus.

Os romanos têm o conceito de “numen”, do que gera fascínio, perante o qual os mortais não têm poder e apenas podem contemplar. Nas eleições romanas, Bonfante lembrou bem que não se tratava de acto de mera vontade, mas igualmente de inspiração, de revelação de verdade divina, e nesse aspecto o conclave está mais próximo de uma assembleia romana que de uma assembleia parlamentar. Não se vota apenas em quem se quer, vota-se em quem se descobre merecer. O que pedem os áugures é a revelação divina.

Por outro lado o cristianismo não é só revelação. As parábolas de Cristo são disso bom sinal. Não se oferece a revelação como caixa de bombons já embrulhados e prontos a consumir. A revelação impõe uma participação dos seus destinatários. Existe um esforço para despir o significado da parábola e nesse sentido está mais próxima do pensamento grego: despir e ver despir, activo e passivo.

Por isso aparece a terceira injustiça nesta ideia de revelação: uma revelação nunca é só passiva. As ditas religiões reveladas não teriam produzido teologia caso assim fosse. A rica (expressão pequena para definir a extensão da coisa) teologia cristã é bem mais vasta que a teologia pagã. Se a revelação fosse só passiva não haveria nem teologia, nem concílio, nem dogma.


Porque se teima então nesta oposição entre religião revelada e não revelada? Porque, com todas as injustiças que a sua ideia simplificada traga, tem alguma coisa de verdadeiro.

Onde está o seu núcleo de justiça?

Não é na maior ou menor tolerância. Daí que com revelação ou sem ela não existe maior ou menor espaço de liberdade. Na democrática e iluminada Atenas as acusações de ateísmo existiram. A ideia de blasfemia é grega e de sacrilégio romana.

Também é simplista dizer que a religião antiga é mais formal, menos interior. O culto do imperador romano surge espontaneamente no Oriente do Império por influência helenística e egípcia. Augusto teve de mostrar algum desconforto (se o tinha efectivamente ou não, ignoro-o) quando começou a ser cobiçado para os altares. Nunca impôs a sua divinização. O culto da deusa Roma não era apenas politico, porque afirmar o "apenas" politico seria esquecer a natureza sagrada da cidade antiga, sobretudo da cidade universal que era Roma (o “apenas” político vem de segregação cristã). Os limites da cidade eram definidos, não por acto de engenharia, mas por acto religioso.

Não é igualmente na ideia de cânone que se encontra a revelação. O cânone cristão levou alguns séculos a ser estabelecido e existia um cânone grego com Homero e Hesíodo. O cristianismo não surgiu com o cânone, apenas se estabilizou com ele a sua expressão.

Onde está o fundo de verdade desta ideia de revelação? O cristianismo é uma religião revelada não tanto por revelar algo, mas por revelar alguém. Todas a religiões nos pretendem revelar algo, uma origem, uma ordem do mundo, um destino. Se o cristianismo pode ser chamado de religião revelada é-o porque revela alguém e mostra que o algo e o alguém são indissociáveis. Deus, o seu Filho, o Espírito Santo, a Boa Nova, o nosso destino, a nossa razão de ser e o sentido do mundo e da vida são indissociáveis. O que tem de novo o cristianismo é ligar indissociavelmente pessoas e coisas, ou melhor, mostrar que não podem ser desligadas as mensagens das pessoas que as encarnam.

Sob o ponto de vista histórico, filosófico, antropológico, enfim o que se quiser, a grande novidade do cristianismo é tornar indissociável a mensagem da pessoa. Quando vemos as imagens de Zeus este tanto é o sublime Deus dos céus como o marido enganador, como o Zeus teológico. Ares é o temido deus da guerra, o deus apanhado em flagrante delito de adultério com Afrodite, mas igualmente um deus apropriado pelos filósofos. Entre alegoria, comédia e epopeia a divindade apresenta muitas faces, ou melhor, muitas personalidades, imagens radicalmente diversas.

As Pessoas neotestamentárias não mudam, e a sua mensagem não muda. As interpretações podem ser muitas, mas não se passa do registo de comédia (salvo em raras heresias como o docetismo) para a tragédia ou a epopeia, e, sobretudo, nunca Cristo nunca se tornou uma alegoria (salvo em certas correntes gnósticas). A resistência à alegoria, a permanência como pessoa, e pessoa associada a uma mensagem, é o que traz de novo o cristianismo.

Por isso se é verdade que é uma religião revelada, e nisso não haverá injustiça, é mais no que revela que no acto de revelar que se distingue das religiões antigas. A ligação elástica, mole e muito variada entre a personagem e a mensagem foi abolida. Existe a possibilidade de um sentido e uma pessoa se ligarem de forma inquebrantável. Essa é uma das versões da Boa Nova. Mas o que tem de multiforme o cristianismo é que ela pode ser enunciada de muitas formas. A riqueza do axioma “Deus é amor” é infinita e pode ser desglosada sem fim.








Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Caridade e solidariedade III

Qual é o mundo que transmite a palavra solidariedade? Um mundo que se pretende não sentimental, metafísico ou revolucionário. Mesmo que movimentos ditos alternativos usem a palavra, não é nem privilégio deles, nem se apresentam verdadeiramente como revolucionários. Os movimentos alternativos são em muitos aspectos profundamente conservadores e conformistas, o que deixo para outra demonstração.

Mas o mundo que está por detrás da palavra é bem outro, e explica mais o que se quis que dissesse que o que efectivamente diz. O mundo solidário, o mundo sólido, é o mundo da cola, em que a realidade só se une pela grude, pela ideia de bloco. Não há unidade sem colagem porque a unidade não se funde na relação livre, mas nas correntes que prendem uns aos outros.

O mundo que está por detrás da solidariedade é um mundo pequeno burguês, do almoço de Domingo obrigatório com os sogros, das festas em família recorrentes em que todos enfadam todos, frequentemente discutem entre si, se insultam... para se reunirem na festa de aniversário seguinte. O mundo da solidariedade é um mundo com medo das palavras, com o que “parece mal” ("caridade” faz corar, o sentimento é substituído pela sexualidade onde se introduziu sub-repticiamente sem ser nominado o sentimento, onde a piedade religiosa apenas assume a forma do tabu).

São duas marcas fortes da sua origem pequeno-burguesa: o “parecer mal” e a união como grude. O pequeno burguês nunca foi livre. A grande burguesia nobilita-se pela cultura, o proletariado pela revolução. O pequeno burguês apenas tem o caminho de uma imitação timorata, do medo de descair para de onde vem e donde se mantém perto. É um mundo de medos, em que a aparência é o essencial. Precisa de se diferenciar, exactamente porque a diferença não é notória.

A solidariedade traz por isso a sua marca. Delicia-se com a palavra quem tem medo da caridade, em que a união é livre e é dádiva, e profusão e abundância e não mera abastança. A caridade é oferecida como acto de liberdade e recebida por um acto da mesma natureza. A solidariedade é imposta. A caridade é obra de gente livre, que optou por se dar, é real abertura sem quebrar a solidez. A solidariedade é passividade de quem apenas consegue estar em conjunto com grude. A imagem da caridade é o anel, a da solidariedade o “napperon” de "crochet" em cima de televisão (ou hoje em dia o cesto de verga sobre a parede branca). Deslocado, necessário, timorato. O seu entusiasmo é falso, tanto quanto a festa de família a que se vai por obrigação.

Passeamos por séculos e diversas culturas para perceber o que seja a solidariedade. Mas se a mancha atravessa o tecido todo pode ser confundida com o tinto. Espero ter mostrado que se trata apenas de nódoa.




Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Caridade e solidariedade II

Embora não seja etimologicamente aparentada, sob o ponto de vista semântico a palavra “charis” em grego representa igualmente graça, dádiva, favor, que dá em português a palavra “carisma” (o que tem alguém que recebeu uma graça, no fundo). Em latim dá “carus” (caro, nos vários sentidos), “caritas”. Para representar o amor, os autores da patrística latina usavam frequentemente o verbo “diligo” para amar e “caritas” para amor.

A palavra “caritas” é assim legitimamente traduzida por amor e caridade. O problema é que a palavra caridade tem vindo a perder prestígio. Parece que humilha quem a recebe. Nos países anglo-americanos não é assim. “Charity” ainda tem conotações bem positivas. Mas nos países latinos e do continente europeu tornou-se quase ridícula. Foi substituída pela palavra solidariedade.

Que imagens de ser humano estão por detrás de cada um destes conceitos?

Caridade traz a imagem de dádiva, de entrega de si. Trata-se de um amor, não de desejo, mas de entrega. A imagem do anel a que está associada traduz a ideia de aliança, mas igualmente de uma forma moldada ao corpo humano. Pode ser usada no dedo, é feito para o ser humano. Que em evolução semântica tenha dado referência a cadeias compreende-se. Um anel pode prender, se for pesado demais para quem o porta. Um anel pode ser usado para reunir. O seu efeito não está na forma mas na adequação entre o seu peso e a potência de quem o usa.

Um anel tem uma abertura, é sólido, mas aberto, deixa espaço livre. Une, tem peso, mas liga. Demarca, anuncia, comunica.

Já a solidariedade, que seja do meu conhecimento, é palavra que surge no século XIX em França. Mais uma vez é curioso que sejam os mais anti franceses que mais usam a palavra. Surge num contexto geral de funcionalização, de obsessão pseudo-científica, de reconversão de categorias tradicionais.

Onde se lia amor passava a ler-se fraternidade. Mas a fraternidade tinha vários problemas. Em primeiro lugar tinha uma marca revolucionária que afasta a sensibilidade tecnocrática (outra palavra francesa da mesma época). Em segundo lugar tinha ainda uma marca afectiva forte demais. Numa perspectiva mais “científica”, cultivada por pessoas que pouco praticavam a ciência na sua maioria, era necessário um conceito que afastasse o lado afectivo, vivencial da coisa. O cruzamento do espírito anti-revolucionário com o espírito pseudo-científico gera uma palavra perfeita: solidariedade.

Solidariedade lembra o sólido geométrico, uma categoria da física. Conceito limpo de toda a origem metafísica, de toda a apreciação subjectiva, apresenta-se pronto a usar, neutro politicamente, sentimentalmente, metafisicamente. De um só golpe se afasta a revolução francesa como tormenta passada, o romantismo como sensibilidade fora de moda e a origem religiosa como primitivismo ultrapassado. O fito é higiénico, o impulso é de purificação.

A equação perfeita. O problema é que existe uma grande distância entre o que queremos dizer e o que efectivamente dizemos quando não bebemos directamente da fonte das palavras. É essa distância que me parece justo agora colmatar.

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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Caridade e solidariedade I

Na sua peça Nathan o Sábio (Nathan der Weise) Lessing descreve a célebre parábola dos anéis. A interpretação comum é a de se considerar que se pretendia inspirar o espírito da tolerância. A intenção é boa, própria do Iluminismo, nomeadamente alemão, mas mereceria muito mais comentário.

O discurso dos anéis é tido em frente do sultão, o que mostra a sua natureza política. A tolerância nada tem de científico, é antes princípio político. O século XVIII é em grande medida o do primado do político sobre a economia, a discussão científica, do debate literário... e a própria religião.

Existe no fundo muito de religioso, mais ou menos evidente, nesse discurso que se pretende político. Mas, muito no espírito do platonismo médio com toques de cepticismo, o europeu aprende a suspender o juízo, o que é exercício nobre, mas por vezes, bem pior que cansativo, situação eminentemente instável e atlética. Como o "et caetera", a suspensão do juízo é do descanso dos sábios e o refúgio dos ignorantes. E a própria ideia da tolerância exigiria muitas qualificações.

A verdade é que a parábola do anel é mais rica do que parece. A palavra francesa “bague” é aqui algo significativa e mostra ressonâncias do conceito algo inesperadas. Para uns bague vem do neerlandês “bagge”. Outros afirmam que vem do baixo latim "bacae, baccae", «anéis de cadeias». A palavra “boia” seria prima de “bague”. Encontra-se no baixo latim igualmente as palavras “bauga” e “bauca” que significaria bracelete e viria do gótico “baug”e do islandês “baugr”, significando anel.

É estranha esta similitude entre o baixo latim e línguas germânicas. A única hipótese de conciliação que vejo é a de se considerar que o baixo latim foi buscar a línguas germânicas a expressão. Se assim for, a expressão anel de cadeias tem origem no anel de dedo e não o contrário. O anel do dedo seria o seu centro semântico mais antigo. Sei que é fácil brincar às etimologias e a História está cheia delas desde Varrão a Gélio passando por Santo Isidoro de Sevilha. Mas os parentescos semânticos e as suas reverberações são indesmentíveis.

Podemos dar mais um passo, este agora hipotético, porque seria desonesto afirmá-lo com certeza sem fontes em apoio. No entanto, parece-se significativo, nem que seja por reverberação semântica. Em zend “baz” é distribuidor de dádivas. “Bhaġ” em sânscrito dá em persa antigo e em zend “bhaga” deus, distribuidor de dádivas. Ainda hoje em dia as línguas eslavas usam variantes de “bog” para nomear “Deus”. Significativo também que em polaco “bogaty” signifique “rico” e “diuus” possa tanto ser em Latim o rico, como o divino, e mais especificamente Plutão, o deus dos infernos. A dádiva tem sempre uma ligação à prosperidade, à abundância, mas também ao mistério das profundidades.

Um anel é um presente, uma dádiva por excelência. E não deixa de ser curioso que Lessing use uma parábola cujas reverberações linguísticas poderia não conhecer. Tanto mais significativo que não as conheça. O anel é o símbolo da manifestação de Deus. Havendo três anéis de que já não se sabe a autenticidade, sabendo nós que um seria verdadeiro, mas não qual, haveria que respeitar a três religiões monoteístas do Livro. Ficaria assim a questão resolvida.

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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Machado de Assis








Um amigo meu brasileiro, com o qual já contacto desde há cerca de doze anos, teve sempre a generosidade de divulgar a minha obra no Brasil. Durante anos falámos de questões profissionais ou então de política.

Por um desvio ocasional começámos a falar de outros temas e um deles foi a literatura. Eis senão quando ele me começa a falar de Machado de Assis. Eu já o tinha lido na adolescência, mas tinha-me ficado pelos clássicos que existiam em muitas bibliotecas privadas portuguesas. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, a Casa Velha.

Sendo ele um entusiasta de Assis, lá me convenceu e li três livros de uma assentada, o que não é muito meu costume. Li (reli seria abusivo, não me lembrava de nada) as Memórias de Brás Cubas, a Casa Velha. E ousei ler o Quincas Borba. Ainda me falta ler muita coisa de Assis, mas enfim, já é um começo.

Não gosto de fazer juízos apressados, e por feitio não sou de paixões instantâneas. Por isso, seria desonesto dizer que nutro uma admiração sem limites por Assis. Para ser franco, passou-se com ele o melhor que se pode passar no primeiro contacto. Fiquei com um ponto de interrogação em cima da cabeça. Aconteceu-me o mesmo quando li Mann a sério pela primeira vez, o que é o melhor elogio que posso fazer a um autor. Porque a paixão por Mann existe há décadas e nunca esmoreceu.

O curioso com esta experiência de Assis (honni soit qui mal y pense, porque não falo de santos) é que me relembrou em geral a experiência de lidar com um novo autor. Faz-nos sempre lembrar alguém. Vamos tacteando nas nossas referências comparando-o. A comparação como central é sinal de que ainda não capturámos plenamente a sua personalidade, o seu lugar especial. Mas à falta do melhor, é o instrumento que temos.

Há alturas em que o seu ritmo faz lembrar Boris Vian (longe de ser os meus favoritos). A sua ironia estabelece-se por contraste com a aristocrática ironia queirosiana. Eça distancia-nos para nos fazer rir. Assis aproxima-se de nós, sussurra-nos ao ouvido como um mexeriqueiro. A sua ironia é mais burguesa. Por isso fez-me perceber a relevância que tinha para Mann ter uma mãe brasileira. A sua dialéctica era completamente alemã. Assumia-se como plenamente burguês. E por isso não se percebia o seu toque de brasileirismo sob a névoa de Goethe. A sua ambição de ser Dichter, poeta, escondia as origens mexeriqueiras de muita da sua obra.

É verdade. Há aspectos da sua ironia que me fazem lembrar Thomas Mann, e talvez o facto de este ter mãe brasileira não seja estranho. A ironia do Eça é distância aristocrática. A de Mann (e Machado de Assis) segreda-nos ao ouvido. A de Mann tem marca alemã porque estar marcada pela figura tutelar de Goethe e a procura de dignidade patrícia teve alguma influência nisso. Assis não tem problemas em fazer mexerico no Brás Cubas. Embora envoltos em contextos diversos, ambos põem a nu as convenções mostrando respeitá-las ao mesmo tempo, o que para mim teve sempre mais picante e subtileza que a violação grosseira das convenções, que é sempre sinal de facilidade.

Digo isto tudo com uma incondicional admiração por Mann. Poucos trabalham a lama e a transformam em ouro (as profundas ligações entre Jung e Mann, que nunca foram íntimos, mereciam um tratado, aliás). Mas um autor explica o outro, e Assis fez-me perceber até que ponto, sob a capa profunda e verdadeira da germanidade, se esconde algum brasileirismo nos textos de Mann.

Há algumas coisas que me impressionaram. Até que ponto o Brasil na época ainda estava próximo de Portugal (ia-se estudar para Coimbra, por exemplo) para o melhor e para o pior (nomeadamente a prevalência de uma cultura retórica que ele bem analisa).


Até ao momento descobri que há duas coisas em que me sinto próximo de Assis: ele dá a palavra aos mortos, por um lado, e por outro, liga as personagens de várias obras entre si. As obras dialogam entre si. Estes são dois aspectos que sempre me marcaram, e talvez isso signifique que também eu tenha uma ponta de brasileirismo (ligações familiares podem impô-lo), ou mais precisamente que o Brasil fez vir ao de cima algo que na maioria dos portugueses está apenas latente.

Porque dar palavra aos mortos e pôr as obras em ligação entre si tem um fundo comum, embora este não seja aparente. Nascem ambos do amor ao diálogo, não à conversa corriqueira da esquina, mas ao diálogo profundo. Ninguém está obrigado ao silêncio, desde que tenha algo para dizer. Pode saltar de uma obra para a outra, pode passar igualmente a fronteira da morte. As fronteiras são essenciais, mas não podem ser limitações. Não tem sentido ficcionar que o morto está vivo, a obra é outra, o europeu é chinês. Seria desonesto e empobrecedor. Mas precisamente por haver consciência da fronteira, esta ajuda a demarcar o diálogo, ou seja, fazê-lo nascer.

Que Quincas Borba fale em duas novelas e, na segunda, com o seu nome fale de duas formas, a de homem e a de cão, nada traz de tonto. Todos nós falamos de muitas formas diferentes. As fronteiras estão lá, apenas para nos lembrar que sem elas não é possível o diálogo.









Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? VIII

D. Conclusões

Cada um tem a sua preferência, e por isso confesso que os meus papas preferidos no século XX são Bento XV, Paulo VI e agora Bento XVI. Os ícones mediáticos deixam-me frio.

Estes papas têm todos algo em comum: surgiram em épocas de ódio e conflito, eram grandes pensadores e homens em que o pensamento era uma forma de agradecimento, mas sobretudo de generosidade.

Tanto Paulo VI como Bento XVI são papas pouco atraentes na perspectiva mediática. Surgiram depois de ícones. Mas o que fizeram na sombra produziu bem mais frutos que outros papas mais visíveis fizeram.

Bento XVI é um grande intelectual, é um homem de profunda fé, e um homem que é carregado pelo amor. E deixa, sobretudo à Europa, uma herança que só poderemos avaliar daqui a uns anos. Mas que será provavelmente bem mais funda que a de João Paulo II, talvez por ser menos visível. Também este papa pode dizer: não tenhais medo. Seja do ridículo, seja da razão.


Alexandre Brandão da Veiga

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