Caridade e solidariedade II
Embora não seja etimologicamente aparentada, sob o ponto de vista semântico a palavra “charis” em grego representa igualmente graça, dádiva, favor, que dá em português a palavra “carisma” (o que tem alguém que recebeu uma graça, no fundo). Em latim dá “carus” (caro, nos vários sentidos), “caritas”. Para representar o amor, os autores da patrística latina usavam frequentemente o verbo “diligo” para amar e “caritas” para amor.
A palavra “caritas” é assim legitimamente traduzida por amor e caridade. O problema é que a palavra caridade tem vindo a perder prestígio. Parece que humilha quem a recebe. Nos países anglo-americanos não é assim. “Charity” ainda tem conotações bem positivas. Mas nos países latinos e do continente europeu tornou-se quase ridícula. Foi substituída pela palavra solidariedade.
Que imagens de ser humano estão por detrás de cada um destes conceitos?
Caridade traz a imagem de dádiva, de entrega de si. Trata-se de um amor, não de desejo, mas de entrega. A imagem do anel a que está associada traduz a ideia de aliança, mas igualmente de uma forma moldada ao corpo humano. Pode ser usada no dedo, é feito para o ser humano. Que em evolução semântica tenha dado referência a cadeias compreende-se. Um anel pode prender, se for pesado demais para quem o porta. Um anel pode ser usado para reunir. O seu efeito não está na forma mas na adequação entre o seu peso e a potência de quem o usa.
Um anel tem uma abertura, é sólido, mas aberto, deixa espaço livre. Une, tem peso, mas liga. Demarca, anuncia, comunica.
Já a solidariedade, que seja do meu conhecimento, é palavra que surge no século XIX em França. Mais uma vez é curioso que sejam os mais anti franceses que mais usam a palavra. Surge num contexto geral de funcionalização, de obsessão pseudo-científica, de reconversão de categorias tradicionais.
Onde se lia amor passava a ler-se fraternidade. Mas a fraternidade tinha vários problemas. Em primeiro lugar tinha uma marca revolucionária que afasta a sensibilidade tecnocrática (outra palavra francesa da mesma época). Em segundo lugar tinha ainda uma marca afectiva forte demais. Numa perspectiva mais “científica”, cultivada por pessoas que pouco praticavam a ciência na sua maioria, era necessário um conceito que afastasse o lado afectivo, vivencial da coisa. O cruzamento do espírito anti-revolucionário com o espírito pseudo-científico gera uma palavra perfeita: solidariedade.
Solidariedade lembra o sólido geométrico, uma categoria da física. Conceito limpo de toda a origem metafísica, de toda a apreciação subjectiva, apresenta-se pronto a usar, neutro politicamente, sentimentalmente, metafisicamente. De um só golpe se afasta a revolução francesa como tormenta passada, o romantismo como sensibilidade fora de moda e a origem religiosa como primitivismo ultrapassado. O fito é higiénico, o impulso é de purificação.
A equação perfeita. O problema é que existe uma grande distância entre o que queremos dizer e o que efectivamente dizemos quando não bebemos directamente da fonte das palavras. É essa distância que me parece justo agora colmatar.
A palavra “caritas” é assim legitimamente traduzida por amor e caridade. O problema é que a palavra caridade tem vindo a perder prestígio. Parece que humilha quem a recebe. Nos países anglo-americanos não é assim. “Charity” ainda tem conotações bem positivas. Mas nos países latinos e do continente europeu tornou-se quase ridícula. Foi substituída pela palavra solidariedade.
Que imagens de ser humano estão por detrás de cada um destes conceitos?
Caridade traz a imagem de dádiva, de entrega de si. Trata-se de um amor, não de desejo, mas de entrega. A imagem do anel a que está associada traduz a ideia de aliança, mas igualmente de uma forma moldada ao corpo humano. Pode ser usada no dedo, é feito para o ser humano. Que em evolução semântica tenha dado referência a cadeias compreende-se. Um anel pode prender, se for pesado demais para quem o porta. Um anel pode ser usado para reunir. O seu efeito não está na forma mas na adequação entre o seu peso e a potência de quem o usa.
Um anel tem uma abertura, é sólido, mas aberto, deixa espaço livre. Une, tem peso, mas liga. Demarca, anuncia, comunica.
Já a solidariedade, que seja do meu conhecimento, é palavra que surge no século XIX em França. Mais uma vez é curioso que sejam os mais anti franceses que mais usam a palavra. Surge num contexto geral de funcionalização, de obsessão pseudo-científica, de reconversão de categorias tradicionais.
Onde se lia amor passava a ler-se fraternidade. Mas a fraternidade tinha vários problemas. Em primeiro lugar tinha uma marca revolucionária que afasta a sensibilidade tecnocrática (outra palavra francesa da mesma época). Em segundo lugar tinha ainda uma marca afectiva forte demais. Numa perspectiva mais “científica”, cultivada por pessoas que pouco praticavam a ciência na sua maioria, era necessário um conceito que afastasse o lado afectivo, vivencial da coisa. O cruzamento do espírito anti-revolucionário com o espírito pseudo-científico gera uma palavra perfeita: solidariedade.
Solidariedade lembra o sólido geométrico, uma categoria da física. Conceito limpo de toda a origem metafísica, de toda a apreciação subjectiva, apresenta-se pronto a usar, neutro politicamente, sentimentalmente, metafisicamente. De um só golpe se afasta a revolução francesa como tormenta passada, o romantismo como sensibilidade fora de moda e a origem religiosa como primitivismo ultrapassado. O fito é higiénico, o impulso é de purificação.
A equação perfeita. O problema é que existe uma grande distância entre o que queremos dizer e o que efectivamente dizemos quando não bebemos directamente da fonte das palavras. É essa distância que me parece justo agora colmatar.
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