sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Patriarcado judaico-cristão?








A expressão é tão pretensiosa que até me custa comentá-la. Mas o que anda no ar de tempo, como as poeiras e os cheiros menos desejáveis, faz parte do nosso ambiente e carece que dele curemos.

O argumento, que foi aduzido por um artista meu conhecido, é o seguinte: a civilização judaico-cristã institui o Deus único, patriarcal e consagra a monogamia, tudo isto artificial. Esta sequência de palavras – pouco mais é que isso, já a ouvi tantas vezes, e no entanto parece-me ser pouco mais que uma sequência de palavras –, esconde muitas confusões numa aparente clareza. Há ordem numa fileira de formigas. Mas esta fiada de palavras mostra que pouco se leu, e mal.

Quanto à idioteira que é o conceito de civilização judaico-cristã já disse o que tinha a dizer. Conceito tendencioso, nada científico, sem nenhuma função explicativa.

Associar o Deus único a esta civilização em exclusivo ou dando-a como fonte única deste Deus único é no mínimo temerário. Porque há que distinguir três realidades diversas. Uma coisa é o monoteísmo: só há um Deus, o resto são falsos deuses, demónios, ou inexistentes. Outra o henoteísmo: existindo ou não vários deuses, apenas se adora um. Uma terceira é o sistema de avatares em monopólio, à falta de melhor expressão.

O monoteísmo encontra-se na dogmática oficial do cristianismo, do judaísmo pelo menos a partir de certo momento e no Islão. O henoteísmo existiu entre os judeus até ao cativeiro da Babilónia (mas é sempre artificial dizer algo sobre isso), ou até Moisés (quem saberá dar uma resposta unívoca a esta questão?). O sistema de avatares em monopólio encontra-se em certos temas dos Vedas (o Bhraman é uno, é tudo, etc.), entre os gregos e romanos (que falam em Deus no singular, apesar de referirem a vários deuses), ou eventualmente o Diaus Piter dos indo-europeus. Avatares porque se reconhece que os vários deuses são manifestações de um único divino, e em monopólio porque o divino é único. Quem efeito, podem existir avatares em politeísmo puro.

É evidente que um especialista em História das religiões teria mil objecções a colocar à minha classificação e dar-lhe-ei razão. As combinações são infinitamente mais complexas. Por outro lado, há que distinguir as enunciações filosóficas, as teológicas e os sentimentos populares colectivos e individuais na matéria. Há que distinguir os discursos, das prácticas e das crenças. Para muitos, por exemplo, a ortodoxia cristã (ocidental e oriental) ou certas versões do Islão (xiitas, karedhjitas) seriam parte de um sistema de avatares em monopólio. Há de tudo, as épocas teriam igualmente de ser diferenciadas.

Paro por aqui. O que interessa é mostrar o seguinte: Deus único e civilização judaico-cristã não são ligação evidente, de causa e efeito, exclusiva.

Já quanto ao patriarcado a questão é outra. Este tipo de afirmações parece dar entender que foi a tal da judaico-cristã que inventou essa coisa fétida que é o patriarcado. O problema é que ele se encontra entre os semitas (sabe Deus como o Islão é tradicionalmente muito mais patriarcal que o cristianismo), entre os chineses, os japoneses, os indianos. As mulheres tiveram o azar de quase todas as culturas serem patriarcais, salvo alguns espaços da Ásia e, paradoxo para os ignaros, a Velha Europa pré-indo-europeia. Em que graus, de que modo, é questão que é especulação querer descrever em pormenor.

O que interessa, para os efeitos que ora importam é o seguinte: patriarcado e judaico-cristianismo não estão em relação de causa e efeito. O cristianismo conquistou um espaço que era já ele patriarcal, seja indo-europeu, seja semita.

E eis que aparece a monogamia, que é antinatural. À monogamia opõe-se a poligamia. A verdade é que num sistema patriarcal a poligamia é sempre poliginia, ou seja, um homem pode ter várias mulheres, mas uma mulher não pode ter vários homens. Num mundo patriarcal a monogamia é protecção das mulheres, como o seria num mundo matriarcal a protecção dos homens. Que a monogamia tenha resultado de um papel fundamental do cristianismo, concordo. Como a liberdade de consentimento para o casamento, como forma de protecção da liberdade das mulheres. Mas não creio que o cristianismo se tenha de envergonhar de ter mantido estas duas conquistas para as mulheres: não terem de ser uma entre muitas, e de serem livres (dentro dos limites de uma sociedade que nunca sendo perfeitamente cristã, não tinha agrado nesta liberdade) para se unir a um homem ou não.

Nova questão é a de saber se isto é natural. Admitamos que não o seja (o que é natural sabe Deus o que seja). Também é antinatural que o forte não possa espancar o fraco, nomeadamente que se proíba a eugenia, o genocídio, a carnificina. Afinal, a grande maioria das culturas praticaram alegremente estes feitos sem problemas de consciência. Se o critério da nossa acção for apenas a natureza (resta saber qual, e quem base em que critérios forjados se constrói), talvez quem for detido de menos força possa sair prejudicado.

Após este percurso rápido, dir-se-á mesmo apressado, pelas falácias desta ideia tão espalhada, desçamos à política, e vejamos que tipo de efeitos tem sobre ela.

O discurso oficial é o dos direitos do homem, do sentimento lacrimejante pelas desgraças do mundo. Mas ao mesmo tempo minam-se todos os fundamentos que sustentam esse discurso lacrimejante e sentimental. Mina-se a sua fonte, o cristianismo, mina-se a noção de limites, a noção de condições para a acção. Parece que veio daí um bicho chamado civilização judaico-cristã só para nos impedir de gozar um pouco nesta vida. Além de isto ser uma visão algo pateta do que é o cristianismo mostra um proletariado recém-chegado à cultura que se sente incomodo pelos limites que se lhe apresentam.

Na política gera uma raça de gentes que abomina limites e por isso tanto mais tende a fazer discursos sobre o sofrimento alheio. Abomina que a sua vontade seja contraída, que os seus apetites sejam contidos e por compensação mais se sente no dever de proclamar os seus sentimentos. Daí que possamos estabelecer uma regra prática: quanto mais se vê alguém proclamar quanto chora, maior deve ser a nossa desconfiança. Apenas espreita uma boa oportunidade para ultrapassar limites que identifica como servidão e não como serviço. Descendente de escravos, as fronteiras não são marcas do seu domínio, mas entraves à sua acção. Pisa-as porque para ele essa é uma forma de libertação e se chora pelo sofrimento que provoca e de que nem reconhece ser o autor é porque uma vaga memória de postura senhorial que observou à distância lhe lembra que ter sentimentos é privilégio dos grandes. Saíram-lhe do coração e passaram-lhe para a boca.

O patriarcado judaico-cristão? Mais um flatus uocis, produzido em massa para justificar o que somos apenas por o ser. Podiam ser estas palavras, ou outras quaisquer. Arbitrário uso da palavra, desrespeitoso dela e em consequência da justiça e do sentimento. É a isso que se rende o espaço público entre as três vias da plebe romana: a trivialidade. Agora sob a capa de construção elaborada.




Alexandre Brandão da Veiga

2 comentários:

Quem sabe... talvez... ignoro... disse...

de ciência certa, sei que nunca te carrego além dos primeiros parágrafos.

pesca com mosca, diz-lhe algo?
também é trabalho de pulso, mas a maior parte do tempo tem-se tempo para pensar, acumular idéias, para RETÊ-LAS.
deve ser eficaz, já que hemingway morreu de obstipação. não te quero tal, nota
nunca pratiquei pesca, exceto nuns dias, tinha 18, em que votei não comer nada que não fosse capaz de matar e limpar
os tempos mudam, apanhei o comboio, às tantas o comboio blasé das latas de sardinha a 35 cêntimos na fileira (do tio)

é provável, muito, que fora da europa matasse até ( suspense) 74 quilos. pouco importante, é verdade. no fundo no fundo, são elas que vos guiam

e definem o que querem que vcs deixem. Cá.

Maria Cavaco disse...

já vi que tem um amor de estimação com vários nomes.Eu nem quero dizer qual o que lhe dava eu...
Interessantíssimo tema e como sempre, bem metido!