Interesses
A mais que banal, mas não menos verdadeira, etimologia ensina-nos que o interesse é “inter esse”, estar entre, ou mais profundamente existir entre. O interesse é assim uma integração e uma limitação, uma pertença e um constrangimento. Quando fisicamente um país está entre dois outros, esses outros fazem parte do seu interesse, definem-no. Mas as fontes e as modalidades de interesses podem ter a mais variada origem. Os interesses associam-se a situações de vida, dos quais o espaço físico é apenas uma delas.
Algumas vezes diz-se dos místicos, ou de quejandas pessoas, por razões caracteriais ou outras, que são desinteressados. Em boa verdade não é esse o caso. Muitas vezes são bem mais interessados que os outros, estão bem mais integrados e delimitados pelo que lhes interessa que o comum dos mortais. Desinteressado significa apenas o que não está entre as coisas comuns. A ligação entre alguém e um interesse tem sempre elementos de inevitabilidade e de escolha. Portugal não pode decidir ser africano. Mas pode decidir dar mais ou menos ênfase às suas relações africanas.
Questão diversa é a da percepção dos interesses. A História tem demonstrado que sendo os interesses muito diversos, consoante as pessoas e o longo ou curto prazo, também as percepções dos interesses podem estar profundamente erradas. Mas, definidos os interesses, é perfeitamente legítimo defendê-los.
O que leva as pessoas as errarem na percepção dos interesses e o que as leva a não os defender diz muito sob o estado de espírito de uma civilização. A Europa tem quase tanta vergonha de falar dos seus interesses quanto de falar do seu poder. Ora não se faz política sem uma percepção clara de interesses.
A primeira escolha a fazer tem a ver com a definição dos centros de interesses. Esta é efectivamente uma escolha, com tudo o que isso implica de aleatório e determinado, de racional e irracional. Eu posso aplaudir a vitória de uma empresa só porque é do meu país ou da minha formação política, mesmo que pessoalmente nada ganhe com isso. Mas desde que reconheça um tecido mais vasto de que essa empresa faça parte como um todo, então já terá sentido em sentir essa vitória como minha. O que escolhemos como o que fica dentro desse centro leva a definir o que escolhemos como ficando fora do mesmo e mesmo a ele contraposto. Quando alguém fala do interesse de outrem seja ele país, seja ele região, fala de uma escolha. A desonestidade de muito discurso público é a de dar cheiro de necessidade metafísica o que mais não é (e já basta) que escolha.
Por isso é necessário que para cada um o centro de interesses esteja definido. O meu é a Europa, e por isso a ela me dedico. Para além de outros motivos exigindo bem mais longa confissão, há um muito simples. Portugal sozinho não tem real poder no mundo. As alternativas de aliança são apenas forma de submissão sem poder. Logo, a única forma de Portugal ter poder no mundo é participar num poder maior. Um em que participe e não seja apenas protectorado.
Um interesse demasiado estreito sufoca, um demasiado largo quebra. O estreito aperta as possibilidades de vida, um largo demais estilhaça-as por incorporar em si maior número de contradicções. Um interesse que seja centrado no mundo como um todo apenas acolhe em si interesses contrários entre si, em que os pontos de desunião e fractura são e serão sempre bem mais fortes que os de união.
Comecemos pelos interesses da Europa. O primeiro interesse de qualquer organização política é o de definir os limites do seu poder. De preferência aumentando-o. Poder político, mas igualmente económico, cultural, social. O interesse da Europa é igualmente o da manutenção e de desenvolvimento de um património, de uma determinada concepção do ser humano, e mais importante, de um determinado modo de viver como ser humano. Foi a Europa que o criou e só a Europa se tem mostrado capaz de o desenvolver plenamente. Um cruzamento de expansão para o futuro com um profundíssimo enraizamento no passado. Uma fortíssima comunhão de vivências (muito mais forte da que cabe aos ignaros julgar) e uma diversidade que só tem paralelo (quase) equivalente na Índia.
O interesse da Europa é abranger o seu espaço total, sob pena de vivermos sobre a fractura. Ou seja, a mais ou menos longo prazo o de incluir os países russófonos na sua esfera. A História tem demonstrado que as fracturas da Europa são simultaneamente temporárias e empobrecedoras na medida em que se mantenham. O cisma do ocidente dá-se no século XVI e foi bem profundo. Mas simultaneamente o comércio europeu nunca foi posto em causa. Os dois maiores espaços europeus, o francês e do sacro império eram híbridos, atravessados pelo protestantismo e catolicismo. As alianças entre a católica França e a protestante Holanda, a Inglaterra e mais tarde a Suécia foram perenes, entre o católico Portugal e a protestante (como quem diz...) Inglaterra igualmente, apenas para citar alguns exemplos. A Renascença e o Barroco atravessam a Europa toda sem distinção de cismáticos ou ortodoxos. A cisão da Europa corresponde assim a uma dissipação e a um desperdício de energias.
O interesse da Europa é o de uma cada vez maior união, representando igualmente a soberania de cada um dos Estados na escolha de quem participa nessa união. E é igualmente de que os povos europeus participem, acreditem se empenhem nessa união.
Estando os interesses da Europa em concorrência com outros (o entre onde estão os outros difere do nosso) é interesse da Europa que os nossos interesses não sejam prejudicados nem confundidos com os de outros. Similitudes de interesse tem a Europa com os Estados Unidos, mas igualmente com a América Latina, noutros casos com a África, noutros ainda com a Índia, por vezes com o Japão (se não falo da Rússia é porque no longo prazo entendo que o interesse é o mesmo). Enlear interesses de forma rígida apenas com um parceiro rigidifica as possibilidades de actuação. A obsessão amorosa com os americanos mostra-se assim como uma patologia do segundo pós-guerra que é limitadora e masoquista. Uma boa gestão dos interesses implica sempre estabilidade, mas igualmente flexibilidade de alienação, salvo nos casos em que se pretende fusão.
A incapacidade de discursar sobre o interesse, de pensar sobre ele, de lhe dar lugar nobre na forma de legitimação política, mostra não apenas menoridade moral, mas igualmente espiritual. O “entre” é a parte mais profunda do evangelho apócrifo de Tomé (“Parte este madeiro em dois e ver-me-ás entre eles”, dizia o Senhor), um dos centros do pensamento hermético, de Nicolau de Cusa, do pensamento morfológico de Goethe. O pensamento do “entre” é sempre uma superação de uma lhaneza. Quando Tucídides pensa nos interesses dos gregos para se guerrearem entre si, Filipe o Belo ou Henrique VIII no interesse da coroa ou Heisenberg tenta ler dados espectrográficos, estão todos apostados a ler entre, o que significa inevitavelmente (o que diz algo sobre a estrutura do mundo), aprofundamento. O desmerecimento dos interesses é sempre obra de novo-rico com medo de se meter no meio, em má imitação de fidalga abnegação. É obra de equivocados que conduzem o mundo ao equívoco. Ignoram que o empenho o interesse é a única forma de aprofundamento.
Dos três eixos da análise da política, o dos interesses é o visto com mais desprezo pela pudibundice contemporânea. O do poder é visto com horror, o dos interesses é visto com aristocrático desprezo. Falar de interesses cheira a muito menos nobre que falar em direitos do homem, da missão proselistista laica da Europa ou outras infantilidades. A validade desse desprezo (presunçosamente) aristocrático desfalece logo pela visão dos seus portadores. Mais destinados ao penduricalho que ao brasão, desonram pela sua simples presença a necessidade de demonstração infirmadora.
Alexandre Brandão da Veiga
1 comentários:
E os luso-interesses são: fado, futebol e Fátima (por mais que se pintem de modernos).
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