Eugene Terre'Blanche
Conheci-o em Fevereiro de 1992. Eugene Terre'Blanche era o «garante» musculado da manutenção das terras na posse dos Boers, numa África do Sul em mudança radical com desfecho imprevisível.
Mandela tinha saído da prisão, todos os dias havia violência no Soweto e os brancos tentavam uma coexistência pós-Apartheid, em regime de «damage control». O ambiente era assustador. Coexistia a euforia multi-negra, a prudência de Nelson Mandela e de Frederik de Klerk, um pequeno grupo anglófilo e a turma AWB dos africânder, toda vestida de caqui, liderada por um homem irredutível, Eugene Terre'Blanche.
Há quase três semanas que tentava falar com ele. Todos os dias a agenda era alterada por razões de segurança. Terre'Blanche tinha a cabeça a prémio. Era o general do povo herdeiro dos primeiros Boers que, no século XVI, encontrara na África do Sul a terra prometida para fugir às perseguições religiosas que infligiam violentamente os Países Baixos.
Por fim, veio a resposta. «Amanhã à noite em Upington. Haverá um comício. Mr Terre'Blanche estará presente». No mapa, esta terra ficava longíssimo, junto à Namíbia, num deserto onde as margens do rio concedem algum verde às explorações agrícolas de uma forte comunidade Boer. Lá cheguei, no único vôo, da única avioneta que me levou ao único carro da Avis do único stand de aluguer da pequena pista.
O comício era num pavilhão no meio do campo, cheio de boers que entoavam hinos religiosos, em Africânder. Com a noite, caira também uma trovoada tremenda com trovões próximos que rivalizavam com aquele côro semi-guerreiro. O climax deu-se com a entrada do líder. Acho que nunca vi nada assim. A sobrevivência, a imprevisibilidade, a violência, a certeza do ódio ao branco, e ao preto, a religião, o apego à terra e a possibilidade de a perder, o líder - uniam aquela multidão numa só voz.
De repente, a tempestade faz apagar as luzes. Um dos homens, incauto, aponta a laterna para o palco iluminando o alvo «a abater». Já o líder estava rodeado por um escudo de homens vestidos de preto, com boinas cor-de-vinho, para o protegerem daquilo que parecia ser um atentado. O homem da lanterna foi neutralizado no chão e as músicas voltaram ainda com mais força, agora às escuras. Não quero impressionar ninguém - já acho um bocadinho vedética a fotografia do post - mas a verdade é que o momento foi aterrador. O barracão podia estar cercado e os homens de caqui estavam todos armados. A falta de luz e a confusão da trovoada propiciariam a desordem, em caso de ataque. A reportagem estava assegurada. Eu não.
Nada aconteceu. A luz voltou, o homem da lanterna foi salvo, ouviu-se uma hora de discurso em africânder e jantei com Terre'Blanche alguma coisa intragável.
Era um homem normalíssimo no trato. Voz grossa, conversador, garantia que aquela terra era mais boer do que branca ou preta. Dizia que tinha muitos amigos na comunidade de emigrantes portuguesa e que dispunha de um exército preparado para defender o que era dos seus. Convidou-me para tomar o pequeno-almoço, no dia seguinte, na casa de uma Família africânder onde me mostraria uma cassete com os treinos dessa tropa.
Lá fui. Eugene Terre'Blanche era tratado como um príncipe africano pelos donos da casa. Dava ordens e recebia mordomias. O gosto era recíproco. No vídeo, viam-me mulheres a serem treinadas para a defesa pessoal e das suas casas; homens a cavalo, para o ataque a multidões; rapazes com instrução militar rigorosa, como só vi em Israel.
Acho que ainda tenho essa cassete. Ela nunca foi «usada» no terreno. Como dizia alguém, ontem na BBC, «Terre-Blanche era um embaraço mais do que uma ameaça para a democracia sul-africana». Ironicamente, esta morte violenta, depois de todas as batalhas prometidas e preparadas, poderá ser o «play» do vídeo de Fevereiro de 92.
8 comentários:
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"Voo" à portuguesa e não "vôo" à brasileira. ;)
- A História tem destas coisas...
Belíssima "peça", que merecia ser publicada. Parabéns!
Querida Inez
Se aqueles que só fizeram porcaria acham-se vedetas, você que é uma mente distinta, amiga exemplar e melhor Jornalista, DEVE ter orgulho no que fez, diz e escreve.
E acho óptimo que nos dê a oportunidade de também viver as suas aventuras...A foto está…um espectáculo…
Agradeço os comentários, quase todos pessoais. Sobre a África do Sul seria interessante saber se, desde 1992, a existência musculada do AWB teve ou não um efeito dissuasor nas pretensões de uma reforma agrária compulsiva das facções mais radicais do ANC. Penso que Le Pen, em França, não tem qualquer efeito pedagógico para as políticas de imigração mas interrogo-me se a preparação dos homens de Terre'Blanche não terá evitado os ataques às explorações agrícolas que se verificaram, por exemplo, no Malawi.
Mais um porco nazi e apartheidesco que já está a fazer tijolo...
Seguem-se os apartheidescos sionistas... Decapitem-nos !
Bom texto.
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