segunda-feira, 22 de março de 2010

A herança do nazismo

Um dos aspectos em que mais se revela a infantilidade da nossa época é a sua relação com o nazismo. Transformado no mal absoluto, essa mesma transformação tem consequências patológicas de toda a espécie. Vejamo-las: a) todo o povo alemão é culpado, b) o nazismo não faz parte da História mas do mito, c) o nazismo foi apagado e só aparece em margens.

Pode-se dar o caso de todo o povo alemão ser culpado, admitamo-lo. Como a França e a Inglaterra que com ele pactuaram e que tiveram nas suas elites fortes defensores do nazismo, o mesmo se dizendo de Portugal, Espanha, Roménia... A lista não pararia. E a verdade é que se trata do único povo da Historia que pagou efectivamente os custos das suas asneiras. E em grande medida motu proprio. A principal teorização anti-nazi parte em grande medida da própria Alemanha e nunca um povo com o poder que tem o alemão desde os anos 60 pagou tão colossais indemnizações de guerra.

Para o pensamento oficial o nazismo não faz parte da História, é como uma Encarnação do Mal, uma História de Anticristo. Ao contrário de todos os outros fenómenos históricos, que têm uma perspectiva de compreensão humana, o nazismo é dado como o incompreensível. Até Átila, as crueldades assírias, dos turcos e mongóis, o genocídio dos arménios e assírios pelos turcos em 1915, até isso tem explicação e pode ser objecto mesmo de simpatia. Mas o nazismo é considerado fora da compreensão humana.

O nazismo para esse mesmo pensamento oficial foi apagado. Mas como tudo o que é afastado por um passe de mágica aparece onde menos se espera. Em vez de se ter integrado o nazismo no nosso passado comum, praticou-se um exorcismo; faz-se de conta que já foi apagado, salvo uns grupúsculos que são considerados como casos clínicos.

Este pensamento oficial é ele mesmo patológico e infantil. Porque nada está fora da História, nada na vida humana está fora da vida humana, mesmo que se possa entender que a sua fonte lhe é externa. O nazismo como uma anti-Encarnação é um mito anticristão ele mesmo, mas construído com instrumentos de pensamento cristãos. Nada se apaga da História, e quanto mais recalcada uma realidade, mais ela se manifesta de forma difusa, inconveniente, inesperada. Por isso as metástases do nazismo são tão insistentes na nossa época.

É isso que tentarei fazer. Ver as heranças do nazismo que imperam no actual espaço público.

Algumas são evidentes. Existe uma herança cultural que não se deve tanto ao nazismo, mas à Alemanha enquanto era nazi. Enquanto o era não deixou de ser Alemanha, e não deixou de produzir génio e excelência. Heidegger, Benn, Heisenberg, Richard Strauss não passaram a ser lerdos só porque viviam num regime totalitário, como Prokofiev ou Chostakovski não passaram a ser duros de ouvido por viverem em ditadura. São conhecidas as caças aos cientistas e descobertas alemães depois do nazismo. E se os Estados Unidos devem o programa espacial a von Braun, o caso mais conhecido, ainda estão por esclarecer os roubos que americanos e soviéticos fizeram à ciência alemã. Malvados e imperdoáveis os nazis, mas pelos vistos bastante valiosos para os vencedores.

Mas esta não é uma herança do nazismo propriamente dito, embora Heidegger, um dos grandes mestres da esquerda libertária europeia, esteja bem longe de ser um anti-nazi. A sua herança encontra-se noutros planos.

Em primeiro lugar, o anti-cristianismo. O nazismo não inventou o anti-cristianismo. Este existe desde que existe cristianismo. Todos os grandes movimentos geram reacções e adversários. E em graus diversos sempre existiu na Europa, sob a capa da heresia, da política de Estado, interesses comerciais ou outros. Mas o nazismo é filho da Revolução Francesa (onde se viu um cabo austríaco a governar um país, como lhe chamava o aristocrata Churchill), da revolução industrial inglesa, do empirismo e do racionalismo, tanto quanto dos movimentos irracionalistas do século XIX. Hoje em dia alguns intelectuais anticristãos (penso em Onfrey em França, por exemplo) inventam simpatias do nazismo pelo cristianismo que não existiram. Mas a frase de Hitler: “primeiro os judeus, depois os católicos”, a perseguição de clérigos, a perseguição das aparições marianas dos anos 30 em nome da ciência (?) e da ordem pública (!), o especial cuidado em eliminar os judeus convertidos ao catolicismo, e a própria mensagem racista e eugénica negam frontalmente tanto os ensinamentos crísticos como o das igrejas institucionais. Isto associado à simpatia de Himmler pelo Islão, de tal forma que criou Waffen SS constituídas exclusivamente por muçulmanos. O nazismo não foi original neste papel em comparação com o comunismo, salvo na preservação das igrejas como monumentos históricos. É o mesmo modelo que se encontra hoje em dia. Acarinham-se os templos como meros monumentos históricos, ao mesmo tempo que se recusa o seu papel constitutivo da cultura europeia. Nisto a Europa actual é herdeira do nazismo mais uma vez.

Em segundo lugar, o ódio à tradição. A tradição não é o antigo, ao contrário do que se pensa. É o transmitido. O que é transmitido pode ser bem mais recente. Muitos tradicionalistas do Vaticano I foram confrontados com críticos que se escoravam... nos Padres da Igreja. E para se criticar a moral cristã recorreu-se mil vezes a Epicuro e aos cirenaicos, muito mais antigos que os ensinamentos de Cristo. Também nisto o nazismo não é original. Participa do mito da criação do homem novo, e da mesma seiva dos movimentos futuristas. O futuro como exclusivo motor associado a um passado reinventado é apanágio das ditaduras do século XX, sobretudo do nazismo e estalinismo. Uma Europa que se quer construir com base num passado mítico, em que afinal tivemos mil imperadores e génios muçulmanos, em que afinal fomos apenas encruzilhada de civilizações e não uma civilização em pleno título, associado a uma ideia que nos temos de virar para o futuro depois de termos arrumado sumariamente o passado é o paradigma da actual fase da construção europeia.

Em terceiro lugar, o culto da natureza, do corpo e do desporto associado a uma ideia de superioridade moral do vegetarianismo. Também aqui o nazismo não é original, tendo ido beber à República de Weimar a sua imensa capacidade de antecipar o futuro do século XX. Ainda está por se fazer um hino ao desporto como o filme de Leni Riefenstahl sobre Munique. Mas está lá antecipado muito do espírito da Europa actual. O que nos ocupa tempo dá-nos a medida da importância que objectivamente lhe damos. O tempo que nos ocupam estas tendências diz muito sobre que solo se quer construir a Europa actual, mais uma vez aqui antecipada pelo nazismo (lembro mais uma vez que dos primeiros panfletos ecológicos em papel reciclado era anti-semita, da extrema esquerda alemã).
Em quarto lugar, o racionalismo mágico, que é esta mistela entre referências científicas não digeridas e usadas como fonte de legitimação associadas a uma concepção mágica da vida, em que se julga ser o futuro moldável apenas por esquecimentos e desejos. As curas “quânticas” (!!!), a simpatia pelo lado reptiliano (os dinossauros e os répteis nunca estiveram tanto na moda), a associação entre a alta tecnologia e uma diferenciação moral primeva são todos eles sinais do parentesco da época actual com o nazismo.

Em quinto lugar, como não podia deixar de ser, o anti-semitismo: no fórum altermundialista de Durban circulavam entre ecologistas, altermundialistas e fundamentalistas islâmicos o Protocolo dos Sábios de Sião e o Mein Kampf. O anti-semitismo passou a ser frequentável, e refere-se hoje em dia expressamente ao nazismo, não tanto nos movimentos de direita (que salvo franjas recorrem mais à tradição anti-judaica cristã que ao anti-semitismo) mas mais do lado das novas esquerdas. Sob a capa do anti-sionismo o ódio ao judeu instila-se nos sacerdotes da verdade absoluta dos relativismos culturais.
Em sexto lugar, a teoria da mentira de Goebbels. Uma mentira mil vezes repetida torna-se verdade. Todo o político mente, mas foram os nazis que instauraram esta necessidade compulsiva de construir a verdade absoluta com base na mentira. É sua a ideia da política como reposição de verdades escoradas em mentiras. É o que se fez com a guerra do Iraque (“armas de destruição em massa” passa a ser “democracia” como motivos), mas sobretudo com a adesão turca à Europa. Tanto se dirá que a Turquia é um país europeu que as pessoas passarão a acreditar. Mas a História não terminou bem para Rosenberg nem para Goebbels. E este mundo político pretende estar na reforma quando o boomerang se voltar contra eles.

Em suma, e em tema difícil de caber em poucas linhas, dois efeitos teremos desta invasão nazi no nosso espaço público. Uma diferenciação sentimental que se esbate, orientalizando a Europa, que já está disposta a ter residentes oprimidos em nome em nome de culturas em declínio e abrindo mais ainda o espaço à crueldade. E consequentemente à guerra. E uma Europa de mentiras marteladas até cheirarem ao sangue da verdade. Até que comece a correr um outro mais verdadeiro.

Alexandre Brandão da Veiga

8 comentários:

joão wemans disse...

Muito interessante e útil este texto.
Refiro só dois pontos não mencionados e que quanto a mim se enquadram na herança do nazismo: o aborto, actual grande "indústria" e a eutanásia principiante; duas formas de eugenismo.
No que respeita à ideia de que o nazismo é um parêntese na História, menciono um livro, que a contraria: "La guerre civile européenne 1917-1945: National-socialisme et bolchevisme" de Ernst Nolte.

J. Sepúlveda disse...

Parabéns pelo excelente artigo, que vou compartilhar em redes sociais.

Hoje, é certo, o nazismo revive e suas metástases provêm exactamente daqueles que se proclamam anti-nazistas. Assim é na Europa. Assim é também na América do Sul. O socialismo bolivariano de Chávez é um revivescer do nazismo (apoio ao terrorismo islâmico e antisionismo). E a postura do governo Lula a proclamar uma aliança aberta com o Irão e a reafirmar sua postura antisionista.

Haveria outros exemplos, como foi referido pelo João Wemans do aborto, eutanásia, etc.

Mais uma vez parabéns!

nudes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Blondewithaphd disse...

Sim, de facto, o que mais nos chateia é a constante tomada do particular pelo geral e resumir, mesmo que só por mero e inócuo exemplo, o povo alemão ao nazismo. No resto, sem objecções.

João Moutinho disse...

No meu caso pessoal posso dizer que vivi em Israel durante ano e mio, desde Janeiro de 96 a Julho de 97. E verifiquei que o Holocausto ainda estava muito presente e que o temor (e ódio) aos alemães era claramente superior ao relativo aos árabes.
Como é evidente o artigo está muito bem escrito.
Também nós em Portugal (a uma escala totalmente diferente também tentamos exorcizar o nosso Estado Novo.
Acresce que aquando dos últimos dias do "cabos austríaco" a sua guarda pretoriano era constituída acima de tudo por escandinavos e alguns franceses ma parece que não havia lá nenhum alemão.
Quanto aos ingleses em 1924 exterminaram os aborígenes da Tasmânia, os Belgas têm o seu Congo e assim por diante.

Táxi Pluvioso disse...

O nazismo é apenas a política humana demasiado humana. Quem não deseja fazer mal ao outro? os portugueses bem o sabem na sua relação com a PIDE (essa treta que era odiada é também um mito).

Anónimo disse...

onde foi buscar esta ideia «Heidegger, um dos grandes mestres da esquerda libertária europeia»? As relações entre Heidegger e o nazismo são mais complexas, mais essenciais, do que se possa pensar. A ontologia de Heidegger é uma ontologia totalitária, um totalitarismo ontológico, o Ser como totalidade...

Recuso e imagem do alemão como o povo que mais pagou pelo seus erros ... Os alemães provocaram uma chacina sem igual na Europa. Ouve povos dezimados pela barbárie alemã.Esses sim, pagaram um preço sem limite... Creio no entanto que mais importante do que determinar o grau da'culpa alemã', é compreender a natureza do ódio alemão que se manifestou com o nazismo. Malaparte dizia que a crueldade dos alemães era devido ao medo que estes tinham de seres mais desprotegidos...os velhos, as crianças, os povos ditos 'inferiores' etc... Dizia aquele escritor italiano, que o problema dos alemães era terem uma concepçao paradoxal de liberdade: para um alemão a liberdade é sempre obediencia, a uma lei moral, a um código, a um autoridade.., a uma ideologia, Talvez isto explique como foi possivel o nazismo ter nascido na pátria do Iluminismo europeu... Afinal a liberdade do iluminismo, a liberdade de Kant e da tradição racionalista alemã, outra coisa não é do que a obediencia à Lei. Não há indemização alguma que faça justiça à destruição provocada pela Alemanha nazi.

Existe o perigo de, não tendo claro os presupostos ideológicos que estiveram na origem do nazismo, tomar os extermismos hodiernos como expressão de um nazismo revisitado ... Seria bom, nestas discussões, manter bem presente as diferenças ideológicas, politicas e históricas que destinguem os totalitarismos do nosso tempo.

Guilherme Morgado disse...

Excelente artigo! O sentimento de que o boomerang já iniciou a viagem de regresso é efectivamente sentido nos nossos dias!