quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

II. Ignomínia no Séc. XX

Vejamos, mais uma vez.

O rescaldo da aventura colonial europeia, em que uns participaram mais que outros. Há sempre invejas. Os que ficaram para trás também queriam participar no jogo. Uma ideologia rica em antepassados em todos os casos. Não se diga que a aventura japonesa mergulha os seus fundamentos no xintoísmo, nas profundidades da cultura japonesa, e ficaria assim dourada. Os brasões do nazismo e do comunismo são muito semelhantes e muito superiores em vários aspectos. Platão, Nietzsche, Maquiavel, Thomas Morus, e tantos outros podem ser invocados com tanta ou tão pouca legitimidade para dar uma justificação ideológica a ambos. O que diferencia o comunismo e o nazismo vistos de perto é abissal, mas visto de uma terceira cultura, que neste aspecto terá mais razão se for minimamente lúcida, é muito pouco. Ambos participam de uma dimensão da civilização europeia que existe, é activa, intensa. Não é por acaso que o humanismo, nas suas múltiplas formas, atravessa a cultura europeia. O homem europeu não é mais cruel que outros. Mas preocupa-se mais com a sua crueldade e sabe que restringindo a sua energia cinética lhe aumenta a energia potencial. A Europa é perigosa, em suma. Exactamente porque manifesta de modo menos intenso a sua crueldade, se a compararmos com outras culturas com a mesma diferença de potencial interna. Mas não podemos esquecer outro elemento de ponderação, para além dos aspectos económicos e sociais que são sobejamente estudados. O espírito do tempo. Sem mais. Porquê numa mesma época um conjunto significativo de povos dão soluções semelhantes para os mesmos tipos de problemas? Porquê outras épocas houve de grande crise económica e política, com grande crueldade sem dúvida, mas sem este sistemático desprezo acrescido pela dignidade humana? Há tempestades que atravessam a História, quer se goste quer não. Não cabe aos historiadores dissecá-las até à exaustão, por que ultrapassariam assim os seus limites epistemológicos, o que só abona a favor da sua probidade. Sem dúvida. Mas o facto de não ser lícito a um historiador fazê-lo, por limitações de método, não impede dever ser o facto reconhecido, mesmo sem provas científicas, mesmo sem apoio epistemólgico consensual, por quem quiser manter a lucidez. As pessoas não têm de ser científicas. Sobretudo não têm de ser sempre científicas.

E a cegueira? Como explicar a cegueira? São exactamente os que defendem a igualdade das culturas, em nome de um princípio tão político e tão pouco científico como quem defende a sua desigualdade, os que recusam tudo o que ultrapasse a materialidade, certa racionalidade pré-formatada, misturando de forma arbitrária razão, matéria (e que matéria?, e que concepção de matéria?) e defesa de ideologias, que recusam ou recusaram ver o óbvio. Os que recusaram a religião insistentemente, veementemente, de modo suspeitamente repetido (e por vezes perdendo a razão que tinham ao fazê-lo desta forma) são os mesmos que caíram na mais fanática forma da religião, a da cegueira. Recusar, querer colocar no inferno de forma irrevogável, definitiva, eterna, certos sentimentos, certos impulsos, seja quais eles forem, leva a natureza, destino, ou o que o que quiser, a vingar-se. Cometeram os erros dos que criticaram, e de forma mais brutal, mais arbitrária, mais desesperada. Não houve Inquisição ou Calvino que chegasse aos calcanhares dos exércitos, forças especiais, ou polícias secretas (tão notórias) dos estados totalitários. A igreja católica teve ao menos a sensatez de manter o Index como uma figura aberta, expandindo-se, mas apesar de tudo com oscilações. Manteve sempre a pluralidade, por via das ordens religiosas, das diferenciações sociais, geográficas, sociais, da distinção entre clero regular e secular. O que a História do século XX demonstra é que não há vida religiosa mais mal vivida que a que recusa a religiosidade, que a odeia, que a pretende revogar definitivamente. A cegueira é cegueira perante o invisível. Em uma análise, trata-se de um caso de iconolatria. Pense-se no que se passa com a física, já nem falo da do século XX, mas ainda do século XIX. A teoria de Maxwell, o conceito de campo, pressupõe que a matéria é um conjunto de berlindes como a física popular dos países totalitários pretende defender? Não é o invisível, mesmo o imaterial, o relacional, constitutivo do universo, mesmo para quem recuse segundas instâncias de realidade, sejam abstractas, sejam incarnadas? Que diferença sente a vítima de um idólatra de uma pessoa viva por mais imperial que esta seja em relação a uma vítima de idólatras de pensadores mortos ou de teorias pretensamente vitalistas? Os contornos são diferentes, mas a abjecção moral é a mesma. Não se trata de condenar qualquer cultura. Trata-se de reconhecer que fazer recuar como justificação ao mais profundo de uma cultura (como se fez com o Japão) actos bárbaros é afirmar que a cultura é bárbara. Fazer justificar a crueldade com uma teoria humanista é condenar a teoria, ou a possibilidade de qualquer teoria dominar sem mostrar o seu lado negro, mas em todo o caso é sempre condenar a abjecção de quem o fez. E da sociedade que o permitiu. Talvez mesmo da cultura ou da teoria que o sustentou, ou pelo menos de aspectos da mesma.

Considerou-se como sinal de refinamento intelectual distinguir a beleza do soldado japonês que mata depois de recitar a sua poesiazinha. Mesmo alguém de bom senso e superior estilo como Yourcenar caiu nesse erro. Confundimos a perspectiva. Sob o ponto de vista científico, tenho todo o prazer em compreender a multiplicidade da alma humana, tal como se manifesta em cada cultura. Ajuda a compreender. Não é pecado querer compreender. Mas não considero que haja contradição em querer compreender os fungos e ter nojo do seu cheiro e repulsa pelas suas acções. Um médico analista não tem obrigatoriamente de amar as fezes ou sentir identificação com as mesmas ao ponto de as admirar. O exemplo não é gratuito. Os que à força de chamar a atenção para a necessidade de compreender outras culturas ou certos movimentos se esquecem de revelar a sua natureza repugnante fazem lembrar os médicos do século XVII que se especializavam em cheirar e mesmo a provar as fezes. Compreenderiam por isso alguma coisa da sua constituição? Não me parece. E, pior ainda: não lhes gabo o gosto.


Alexandre Brandão da Veiga

1 comentários:

Anónimo disse...

Brilhantes posts e textos, muito obrigado.

((( Permita-se-me um aparte para realçar a coincidência estatistica e matemáticamente extraordinária, e para referir que o sismo de anteontem foi antecedido por outro, em Portugal, no dia da aprovação do aborto, sendo que este ocorreu no dia do casamento gay,em que mais uma afronta à Bíblia e aos preceitos de Deus foi aprovada.

A III Républica, em pré-bancarrota, tão ou mais ditatorial do que a do "racha-sindicalistas" anda a brincar com coisas sérias como a Ia, esta cambada de pavões maçons, socialistas e incompetentes não aprendeu nada com a história, pena é que depois sejamos nós todos a pagar, e de que maneira, a "factura".)))

Com os melhores cumpts.,
CCInez