terça-feira, 15 de dezembro de 2009

I. Ignomínia no Séc. XX

No século e não do século. Não se trata de liminarmente condenar o século XX. Teve muitos méritos. Sob o ponto de vista material, apesar das queixas, umas vezes justas, outras piegas, nunca tanta gente viveu tão bem. Sob o ponto de vista da maturação sentimental colectiva, nunca houve época com momentos de vivência colectiva mais humana, mais respeitadora da fragilidade alheia, mais repressiva da brutalidade. Nunca tanta gente poude passear na rua sabendo que o simples facto de ser pessoa, noutros casos, cidadão, lhe dava direitos, imunidades, protecção. Não vejo como condenar estes factos. Bem pelo contrário, são conquistas do século XX, colhendo a sua origem noutras épocas é certo (que imensa banalidade) mas representando-se na sua maior excelência no século XX.

Mas o século XX sofreu de doenças bem graves, duas das quais a cegueira voluntária e a brutalidade justificada teoricamente. Os intelectuais, e não os piores de entre eles, justificaram uma ou outra ou ambas das formas mais cruéis, mais indiferentes ao ser humano, ao auto-respeito mesmo, que alguma vez se viram na História. Hitler é um monstro sem paralelo, dizem. Mas o suave japonês que faz as suas poesias enquanto tortura um soldado inglês, ou que atira uma bomba ao enfermeiro australiano que o tenta socorrer, mais não é que a manifestação de uma cultura requintada, apenas com valores diferentes dos nossos. Como o marxismo é uma forma de humanismo, os crimes que o comunismo cometeu são apenas erros e não podem ser cotejados com os dos nazis.

Vejamos.

O soldado que está ser torturado, o pára-quedista inglês que de acordo com as leis internacionais deveria ser considerado prisioneiro de guerra e é qualificado pelo senhor imperador do Japão como criminoso de guerra. Daí que lhe arranquem os olhos, o torturem e acabem com a vida dele para terminar o prato com uma decapitação. Que diria o soldado inglês? Qualquer coisa como: “É sempre bom saber que não é um bárbaro qualquer que me está a fazer isto, mas uma cultura requintada”. Suponho que os seus sofrimentos deveriam ser reduzidos a muito pouca coisa por saber que participava de uma experiência cultural, que simultaneamente lhe alargava os horizontes e lhe diminuía a visão. Consolador. O soldado inglês perceberia finalmente que pertencia a uma cultura bárbara porque não conhecia o refinamento de tais receitas que, como é bem sabido, requerem uma imaginação imensa. Carece-se de uma boa dose de imaginação para saber como fazer sofrer um ser humano, de uma determinada dose de bagagem cultural, parece. Como se os olhos, as unhas, e outras partes do corpo humano não estivessem à vista de qualquer oligofrénico, e acções como pressionar, retirar, cortar, esmagar fossem o resultado de uma elaboração teórica superior.

O camponês ucraniano que morre à fome por força das frustrações de um poeta falhado chamado Estaline, rodeado de acólitos não menos medíocres, também se deveria sentir consolado por estar a participar de uma dieta que tem um fundamento teórico humanista. Ingrato seria se não percebesse a natureza metafísica e abissalmente diferente da sua fome em relação à dos campos de concentração nazis. Reconheçamos que o seu estômago não veria diferença nenhuma, mas todos nós sabemos como o estômago dos europeus é particularmente bárbaro e pouco disposto a reconhecer a grandeza das verdades escatológicas.

Que crime, que cegueira foi esta? Que cegueira é esta que se continua perpetuando assim de forma criminosa? Como podem as pessoas diferenciar o sofrimento de uns ou de outros? A resposta parece-me dever-se encontrar em vários factores. Por um lado, um pensamento profunda e insidiosamente racista que invadiu o Ocidente no século XX. Os crimes nazis são particularmente hediondos porque ocorrem na Europa. Se ocorressem fora desse continente já seriam tidos como naturais, como mera expressão de culturas diferentes (África) ou mesmo como sinal de requinte civilizacional (Ásia). Auto-flagelação. Mas também porque em última análise se consideram mais válidas as vidas de europeus que as dos outros povos. Que estranha mistura de auto-flagelação e de auto-exaltação. Por outro lado, há evidentemente poderes económicos interessados na feitura de filmes, livros, programas televisivos sobre uma matérias e menos sobre outras. Não se trata de uma teoria da conspiração, trata-se de uma defesa mais ou menos organizada de interesses próprios. Basta ver as poucas coisas que se fizeram sobre os ciganos, aristocratas, homossexuais e comunistas mortos pelo mesmo sistema. Em terceiro lugar, esquecemo-nos muitas vezes que há uma real comunhão de natureza (não de identidade sempre, mas sempre de comunhão) entre os fenómenos do nazismo, do comunismo e da expansão imperial japonesa.

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