quando eu era pequenino 2
O Simca Aronde, segunda mão, em que o meu pai me levava, era igual a este, mas azul e branco. Andávamos pelas ruas de Luanda e íamos até às praias, para sul, quase até à foz do Kuanza. A última vez, com as válvulas à beira do colapso, a cambota em surdos lamentos, os pistões a ameaçar greve, fomos para leste, passando por Catete, Maria Teresa, Zenza, até Cambambe. Fomos nós – o meu pai e a minha mãe, a minha irmã e eu, tão candengue – que o levámos pela mão, ao Simca, já tão lacrimoso e ainda tão francês. Não o deixámos, mas se calhar devíamos tê-lo deixado morrer no meio do mato africano que tem o apetite voraz que as mães gostam de ver nos filhos
p.s. - faço notar que esta série - quando eu era pequenino - é uma imitação invejosa das que os Pedros, Norton e Marta Santos, inauguraram, um com a série "Quando Eu For Grande", o outro com o "Manual do Preconceito". Espero que não me cobrem direito de autor.
7 comentários:
Pois, vê-se que foi mesmo pequenino, mais espigadote quererias o Porsche vermelho da praxe.
Deixei umas indicações para melhor rezar na era digital no post da Avé Maria.
Húmidas e gordas graxas à parte, mas mesmo à parte, preocupa-me, isso sim, que por entre o seu inato temporal um certo táxi te tenha topado, imponente e lânguido, em vermelho Porsche. Ai ai ai, querem ver?
Bom, quanto ao Simca Aronde varreu-se-me. E até de ti quase me esquecia... pois como cresceste, rapaz!
Também eu dei grandes passeios em Angola. Inesquecíveis.
O primeiro foi em Junho de 1970. Embarcámos num Nordatlas em Luanda - eu e mais uns quarenta e tal gajos - e saltámos, com todo o equipamento individual, junto à Base de Negage. Foi um 'salto operacional' -dos que fazíamos periodicamente para não lhe perdermos o jeito. Recolhemos à base. Dois dias depois saímos para um longo passeio - até à Grande Pedra. Foi a minha primeira jornada: metade de nós ainda não tinha passeado, mas a outra metade já estava em final de comissão.Parece que havia lá para a Grande Pedra uns maduros do MPLA particularmente activos que se fartavam de criar problemas às colunas do Exército. Ao fim de três dias com várias acções de combate - já sem rações, sem granadas e com poucas munições - conseguimos arrasar a posição inimiga. Fomos recuperados em helicópteros e voltámos para o Negage, onde descansámos durante dois dias. Dois de nós foram directamente para Luanda a fim de serem colocados, enquanto não inchavam, nas urnas de chumbo com destino a Lisboa.
Do Negage, lá fomos outra vez de Nordatlas. Agora, para o Luso, no Leste, onde nos juntámos ao resto do batalhão - o BCP 21.
O novo comandante-chefe, Costa Gomes, encontrou em Angola uma situação militar muito preocupante. Os três movimentos de guerrilha (MPLA, FNLA e UNITA)procuravam, a partir do Leste, abrir rotas em direcção ao Planalto Central e, daqui, para a Luanda e para o Norte.
No Leste, o nosso primeiro grande passeio foi na zona do Rio Cuando. Andámos por lá durante cinco meses. Era aqui que se jogava a sorte da guerra em Angola. O MPLA empregou nesta zona os seus melhores comandantes. Objectivo do MPLA: abrir a 'Rota Agostinho Neto' - uma diagonal desde o Leste de Angola até aos Dembos: as zonas mais ricas ficaraiam com acesso dificultado ao litoral, a economia da colónia ficaraia paralisada, o efeitos psicológico provocado pelos guerrilheiros às portas de Luanda seriam imprevisíveis.
Não andámos por lá sozinhos. Faço aqui homenagem às três companhias de Comandos destacadas para o Leste.
Uma companhia do meu batalhão deu também um longo passeio a Sul de Henrique Carvalho - e destroçou as unidades da FNLA que por lá andavam. A Unita passou a colaborar connosco. O mais difícil era mesmo suster o MPLA - que passou a querer abrir uma segunda rota para o Norte a partir da zona do Rio Luena. O BCP 21, força de reserva do comandante da Zona Militar Leste, general Bettencourt Rodrigues, andou assim dividido entre o Alto do Zambeze e o eixo Rio Cuando- Cuito Canavale. Foram, de facto, passeios marcantes. Chegámos a ir à Zâmbia atacar destruir algumas bases do MPLA.
Até finais de 1971, perdi 12 camaradas. Mas o MPLA não passou: ao contrário, regrediu para posições na Zâmbia. O meu amigo pôde assim passear em sossego com a família.
Em meados de 72, estava a passear na Guiné. O primeiro passeio foi na zona de Guileje - conhecida como o "Corredor da Morte". Apreciei pouco a paisagem, porque o Nino não nos deixava muito tempo livre. Depois, fomos passear para o Norte, na zona de Guidaje. Pelo meios, ainda fizemos umas tantas viagens chatas de helicóptero - os chamados heli-assaltos a posições inimigas. Os passeios na Guiné eram mais duros: os dias eram pegajosos, a humidade colava o camuflado à pele.
Fiquei-me pela Guiné. Já não fui a tempo de passear em Moçambique - onde, diziam, a guerra ia dura, sobretudo, no distrito de Tete. Os nossos amigos da Beira já não passeavam assim tão descansadamente como os de Luanda...
ex-alf.mili.pára Salvador
Meu alferes, quero sinceramente agradecer-lhe a luta e o sangue e suor e lágrimas que terá amargado certamente - e sobretudo lamentar a morte em combate dos seus camaradas. Tive muitos amigos meus, milicianos, que bateram com os costados em combate - e sobretudo nos comandos que (não leve a mal) eram os meus heróis. Havia um capitão China que era uma incrível máquina de guerra. Sabe quem era? Um abraço para si e apareça mais vezes a contar as suas memórias.
Caro Manuel Fonseca,
Noto uma pontinha de ironia nessa do 'meu alferes'. Saiba, ainda assim, que não me sinto diminuído. Alistei-me voluntariamente e servi nos pára-quedistas como aspirante e como alferes. Tenho muita honra nisso e nas duas Cruzes de Guerra (uma em Angola, outra na Guiné)
Não conheci o capitão China. Oficiais Comandos, no Leste de Angola, conheci o tenente Shung Sing e o capitão Oliveira Marques que pisou uma mina e deixou lá uma perna.
Antes de o meu batalhão ter chegado ao Luso, quem lá andou à 'porrada'(em 1969 e nos primeiros meses de 1970) foram de facto os Comandos, que formaram um agrupamento - o Agrupamento Siroco - só para dar caça aos guerrilheiros no Leste.
Depopis de meados de 70, já com o general Costa Gomes como comandante-chefe, a actuação no Leste passou a ser conduzida de uma maneira, digamos, mais estratégica: foi criada a Zona Militar Leste, com um Estado-Maior próprio, e todas as operações deixaram de ser executadas casuisticamente como até aí.
Diz que os Comandos eram os seus preferidos. Está no seu direito. Deixe-me que lhe diga uma coisa: Comandos e pára-quedistas não fazem a mesma coisa. No fundo, uns e outros, são tropas de infantaria: combatem no chão. Mas há operações que têm a cara dos Comandos e outras em que os páras se sentem mais à vontade. Não fazem todos, bem, a mesma coisa.
Não tem que me agradecer o suor e as lágrimas. Sangue não derramei. Suei muito e chorei pelos meus homens mortos. A maneira como tratávamos os nossos mortos distinguia-nos dos Comandos: nos pára-quedistas ninguém fica para trás - nem os mortos. Não deixámos nenhum no campo de batalha. Uma vez, a sul de Bié, sofremos um morto e, pela intensidade e da violência do combate, era previsível que só ao fim de dois dias podíamos sair dali. Enterrámo-lo. Quando terminou a operação, no outro dia de manhã, já com o inimigo destroçado, desenterrámo-lo e pedimos a evacuação por helicóptero. Ao fim de três dias, os corpos estavam tão inchados que já não cabiam nas urnas de chumbo: tinham que ser regados com ácido.
Não fazíamos operações com os Comandos. Fiz muitas operações, no Leste, com os Fiéis (recrutados entre os refugiados do Catanga) e com os Flechas (recrutados entre os bosquimanos e comandados por um pide execrável, antigo capitão-comando, que a SIC há um bom par de anos deu a conhecer ao país).
Não o maço mais com estas histórias. Uma boa Páscoa.
Nenhuma ironia. Meu alferes é só o sinal de admiração pela instituição em que acabei incorporado em Angola, após o 25 de Abril, passe embora a coisa não ter descambado num episódio feliz. Se compreendo em toda a dimensão os seus relatos, devo dizer-lhe que admiro não apenas o que revela das acções militares, mas sobretudo a sinceridade que sinto estar-lhe associada. Dado que a história militar e política de Angola é apaixonante - por ser complexa e muito mais politicamente incorrecta do que se diz - e por andar com uma ideia meia cacimbada na minha cabeça, se tiver paciência para tanto, contacte-me através do e-mail que encontra no meu perfil. Um abraço
Grato pela partilha da brilhante descrição da sua exp.ª de guerra. Apenas uma clarificação :o sr. Cap. Comando Oliveira Marques pisou a mina que lhe amputou a perna em 1971, na região dos Dembos, algures entre a Bela Vista Norte e Zala. Ele e os seus homens pernoitaram na Bela Vista e seguiram para o seu objectivo de manhã cedo. A ocorrência aconteceu ainda na parte da manhã. Foi um acontecimento que me marcou, uma vez que convivi com o sr capitão Oliveira Marques naquelas breves horas que o antecederam.
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