quarta-feira, 11 de março de 2009

Onde Vaz, Fernão?




Detesto um dos principais entretenimentos nacionais, a maledicência gratuita. É sempre mais fácil dizer mal de algo que se faz do que fazer algo.


Por isso, nem liguei quando começaram os inevitáveis ataques mais ou menos trauliteiros a propósito do programa de distribuição do célebre computador Magalhães pelas crianças do Básico.

Numa sociedade marcada pela inequidade de oportunidades entre ricos e pobres, fosso que se alarga com a info-exclusão, aqui estava uma medida niveladora por alto. Não era barata: se cada máquina custar ao Estado 200 euros, os 500.000 Magalhães representam um investimento da ordem de 100 milhões de euros. Não é de desprezar mas é um grande investimento no maior recurso de todos: o humano. Como dizia Tony Blair, se acham que a Educação é cara, experimentem a ignorância!

Que me interessava que a medida fosse divulgada por um poderoso marketing político? Que houvesse empresas a ganhar dinheiro com o negócio (desde que fosse legitimamente – desde quando uma empresa produz máquinas para ter prejuízo)? Que a máquina não fosse de tecnologia portuguesa (mas desde quando existe por exemplo um carro português?), mas uma solução preexistente? Que não exista rede wireless gratuita em toda a extensão do País (nem nos EUA isso ocorre)?

Francamente todas estas “objecções” me parecem absolutamente patéticas e fruto da nossa crónica mesquinhez maledicente. Velhos do Restelo a bradar, não contra um Vasco da Gama mas contra um Magalhães.

O meu filho mais novo esperou ansiosamente um mês pelo seu Magalhães, que eu comprei com todo o gosto e chegou na semana passada. E desde então não o larga.

Foi aí que fui surpreendido, chocado, esmagado pelo Expresso da semana passada. Li e não acreditei: era maiis desinformação. Fui verificar no Magalhães do meu filho: era tudo verdade. O software educativo para crianças do Básico, que estão a aprender a ler e escrever, instalado pelo Ministério da Educação, tinha erros de português que na minha altura dariam chumbo no exame de 4ª classe – ortografia, gramática, sintaxe. Nem é preciso ir longe, estão logo à superfície. “Dirije o guindaste e copía o modelo”. “Quando acabas-te, carrega no botão OK”. “Quando o tangram for dito frequentemente ser antigo, sua existência foi somente verificada em 1800.” E o omnipresente “saír”. Já circulam na Net documentos com o Top 10 do “Magalhanês”.

E aqui perdi as minhas ilusões. Isto não era maledicência gratuita.

Num primeiro nível, sinto-me indignado. É totalmente inaceitável que um projecto destes, subsidiado com 100 milhões de euros dos nossos impostos (mesmo dos que NÃO usufruem dos benefícios, pois o dinheiro sai do OE) possa ter um controlo de qualidade inexistente (é claro que nunca ninguém português leu estas frases). Frases mal adaptadas do francês? Para crianças que estão a aprender a ler? Sendo responsável o ME? Inacreditável. É o análogo informático a investir 100 milhões de euros numa Cartilha Maternal com asneiras. Enquanto contribuinte, exijo explicações e espero tê-las sem insultos à minha inteligência.

Num segundo nível, sinto-me revoltado. Afinal, tudo isto estava mesmo preso com arames, foi mesmo feito sem qualidade, em cima do joelho, sem rigor, sem verificação. O importante era ter isto cá fora a tempo de ser brandido com timings políticos. E o facto de ser um “computador”, termo que ainda assusta muitos pais, só aumenta o novo-riquismo e a sensação de tudo isto ser também uma mascarada pour épater le bourgeois.O supra-sumo do suburbanismo.

Num terceiro nível, sinto-me profundamente deprimido. Mais uma vez, a mensagem que estamos a passar aos nossos jovens é que vale tudo, desde que se seja chico-esperto. Pode e deve ser-se um baldas, fazer tudo à pancada porque no fim vale a pena. Se uma criança de 8 anos que aprende a ler recebe materiais com software educativo com a chancela do ME num português macarrónico, como é que eu a vou convencer aos 12 anos que “fazer um trabalho para a Escola” não é ir à Wikipedia fazer cut and paste de um texto brasileiro sem sequer o ler?

E como é que explico, como me aconteceu há algum tempo num Júri (sim, é verdade!), que é inaceitável, e plágio, que uma Tese de Mestrado original tenha páginas inteiras (mal) traduzidas da Wikipedia? Aliás é curioso que os alunos ainda não tenham percebido que as tecnologias de informação sejam uma arma de dois gumes: se eu suspeito que um texto não seja original bastá-me procurá-lo no Google e descubro isso em 2 segundos.

O que me deprime mais ainda são os valores transmitidos. O crime compensa. Vale a pena ser baldas e preguiçoso – só os chatos é que se dão ao trabalho de pensar para fazer uma coisa original e séria. Não faz mal errar, desde que dê menos trabalho, porque se alguém der por isso depois se vê. E, claro, muitas vezes ninguém dá por nada (o Magalhães anda por aí há 6 meses). Vale tudo. Tanto faz. E se der menos trabalho, melhor.

Daqui a 10 ou 20 anos, quais serão as hipóteses de um jovem que tenha recebido esta formação a quem foram transmitidos estes valores numa entrevista contra profissionais a sério, vindos de países onde as “tecnologias de informação” não sejam vistas com este novo-riquismo balofo e imbecil mas como o auxiliar precioso que são?

Onde Vaz, Fernão?

1 comentários:

Sofia Rocha disse...

Na escola já ninguém deve saber quem foi o outro Fernão,Fernão Mendes Pinto.
É pena, mas apetece dizer:
- Fernão, mentes?
- Minto!