quarta-feira, 11 de março de 2009

II. Porfírio, Sullo Stige, Bompiani 2006

É verdade que existem épocas de recalcamento religioso. A nossa época, marcada por um freudismo em versão vulgata, disserta muito sobre o recalcamento sexual, mas esquece o recalcamento de outras pulsões. Na alimentação, fala-se desde há uns anos nos distúrbios alimentares. O recalcamento intelectual aparece apenas em estudos isolados sobre a auto-mediocrização dos sobredotados. Mas o recalcamento religioso permanece no vazio, no silêncio.

E no entanto, é o mais perigoso e cruel dos recalcamentos. Assumindo que o centro da vida humana é religioso (demonstração que não farei aqui), o recalcamento religioso tem efeitos bem mais nefastos que os outros no longo prazo.

Um período que vai do século I a.C. até ao II d.C. tem várias fases de recalcamento religioso em graus diversos. Os resultados não se fizeram esperar. O século III, o século da grande crise do império romano, é também uma época de explosão religiosa. Não é o cristianismo, nem sequer publicamente, o que mais se destaca. Mas uma diversidade de vivências religiosas que se entrechocam e misturam e convivem entre si. A experimentação, a incerteza, a diversidade e o vazio lutam entre si.

Porfírio é em grande medida o apogeu desse movimento. Neoplatonismo e neopitagorismo (frequentemente confundidos na época), alguns influxos de Aristóteles, os oráculos caldaicos, as religiões mistéricas, filosofias orientais, tudo se encontra num mundo muito mais “globalizado” (expressão bárbara, se a há) do que a presunção de nossa época deixa admitir.

Da Índia ao Próximo Oriente, ao Egipto, até à Grécia, e laivos de religião romana tradicional, tudo se conjuga e se torna presente no pensamento da época. Esta observação é trivial. O que é menos salientado é o facto de este renascimento religioso ser igualmente o das fontes primárias da religião grega clássica, nomeadamente Homero. O Tratado sobre o Estige é disso exemplo eminente. Deixaram de acreditar nos seus deuses os antigos? Nem por isso. Viraram-nos em alegoria, mas não deixaram por isso de vibrar pela sua natureza divina directa.

O tremendum, o numinosum, o poder de fascínio não estava absolutamente perdido. O Estige é o rio terrível, sobre o qual juram os deuses. É o que mostra as condições da felicidade dos deuses, que podem ser castigados quando quebram esse juramento. Felizes, absolutamente felizes, são os deuses. Absolutamente? Não. Há limites, há condições. Cometendo perjúrio sobre as águas do Estige a divindade suspende-se.

O que renasce é o aspecto misterioso da divindade, mas igualmente o das suas vias de suspensão. No fundo, mais um dos lugares da sua incerteza. E lugares em sentido próprio. A certeza do divino exige a procura de uma geografia teológica, seja o Estige, ou o Antro das Ninfas. Os deuses impulsionam mais a reflexão que a acção. Também neste aspecto o cristianismo foi uma salvação porque permitiu uma e outra.

0 comentários: