quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Deus não pode matar-se

Chariots of the Gods, Asha Menghrajani
Ao criar Deus, o homem conferiu-lhe um conjunto de atributos essenciais e únicos. Elejo, entre outros, a omnipotência, a omnisciência e a omnibenevolência. Para que seja consistente a narrativa romanesca e filosófica com que os humanos Lhe cantam a biografia, os atributos divinos têm de revestir necessidade lógica e resistir ao desafio infame do paradoxo. Feito o exercício, é notório que exagerámos largamente pelo menos um dos atributos de Deus, o da sua omnipotência.
Por exemplo, Deus não pode matar-se. Cada um de nós pode, se assim o entender e for oportuno, suicidar-se. Deus não. A arbitrariedade do gesto negaria a Sua eternidade. Ao que acrescem razões morais: Deus não se pode matar porque o pecado Lhe é interdito. Fomos aliás tão mesquinhos ao criá-Lo que, não Lhe conferindo essa autonomia, chegámos ao ponto de O diminuir autorizando-nos a prerrogativa de O matarmos nós – um alemão, Friedrich Nietzsche, foi o seu mais patético e minucioso executor, no final do século XIX.
Mas há mais. Há outro impoder a beliscar a omnipotência divina. Deus não pode fazer que quem viva, não tenha vivido. Estaline ou Mao-Tsé-Tung, a coberto da espúria liberdade do relativismo, deleitaram-se com a manipulação do passado, apagando vidas e reescrevendo a história. É um poder reservado aos humanos. Deus está, nesse aspecto, de mãos atadas: negar existência ao que existiu seria mentir, matéria em que Deus, por lógica, metafísica e ética, é incompetente. A omnipotência divina aplicar-se-á ao presente e ao futuro (com a excepção da possibilidade de se matar), mas não se aplica ao passado.
Deus é uma possibilidade que criámos numa noite de insónia. Oferecemos-Lhe a eternidade para que Ele a viva, minuto a minuto, como um infinito pesadelo.

(Divagação melancólica e livre sobre excertos da “História Natural”, de Plínio, filtrados por “Porquê Ler os Clássicos?” de Italo Calvino, e sobre os artigos “Divine Atributes” e “Paradoxs of Omnipotence” do “The Cambridge Dictionary of Philosophy”)

2 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Manuel,
A questão é profunda e difícil. Para ser franco, não sei responder-lhe e o pouco que sei não cabe aqui. Uma coisa, no entanto, é certa: Desde Xenófanes a Feuerbach, Deus lá estava, nas noites de insónia. Como está, também, nas minhas. Ora, é importante, a este propósito, a pergunta de Santo Agostinho (Confissões, julgo que no livro X): Como poderia eu (que nesta busca me tornei a mim mesmo num imenso enigma) buscar algo que de algum modo não conheça já?
Um abraço

Anónimo disse...

Há algo mais mirífico que Deus não pode fazer: nascer. Uno, eterno e indivisível, Deus nunca poderá, em certo sentido, conhecer o milagre da luz que criou.