quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Democracia e a Realidade

A democracia tornou-se, nos demagógicos tempos que vivemos, numa espécie de fim de linha a que nos vamos habituando e a que temos de nos habituar porque, depois dela não há, diz-se, outra realidade social, não há outro regime, nem outra esperança. É bom, por isso, que nos habituemos. Ela é, toda, a presunção do último encontro, do último estado, o fim do progresso. O que é agora, é o que será.

E o que é hoje? Um regime da inclusão de que ninguém tem o direito de se excluir. O braço que pretende estender-se e abraçar ou aprisionar o mais distante e perdido ser, a quem aconteça existir hoje e no futuro. É o regime que quer que todos estejam representados e de que ninguém se deve escapar porque até o seu escape pretende estar previsto na sua magnânime elasticidade. A democracia é para todos estarem representados porque a democracia é essa representação de toda a suposta diferença.
Nesse acordo (ou será coro?) social que pretende ser a democracia actual, porém, o que de cada um está representado não é a sua individualidade, a sua diferença ou a sua singularidade, mas, e só, a aceitação do acordo. Esse é o seu limite. Não importa o que cada um é. Importa que se inclua não com o que é mas com o incluir-se em si. E, caso não queira aceitar esse acordo social de inclusão, então sim, está fora, está excluído, porque não participa da grande unanimidade em que tem a possibilidade de se incluir mas que preferiu não aceitar. Aí é, impiedosamente, excluído, auto-excluído. Não que não tivesse oportunidade de se incluir, mas porque não quis.
O que fica, então, desta democracia é uma espécie de ficção em que cada um reconhece os outros pelo filtro de um acordo e que se fica, toda, no filtro desse acordo e não no que cada um é realmente. Tal resulta numa forma de demissão da individualidade, num silêncio temeroso de qualquer afirmação de uma intimidade, de uma singularidade e de tudo o que possa por em causa o que é toda a realidade: o acordo social que se presume ser suficiente representação de todos e a que todos e cada um se deve submeter em nome da expectativa de todos os outros.
Esta democracia tomará, por fim, conta da própria realidade, e entende por realidade o sistema da manifestação do acordo social. Fora disso, qualquer manifestação põe em risco as expectativas dos outros, lança um princípio de desacordo e não pode, por isso, ser tolerado. Reduzidos à manifestação da sua aderência ao acordo social, os indivíduos vão-se esvaziando a si próprios de uma existência íntima, perigosa porque os pode conduzir à rebeldia, indesejável porque os conduz à impiedosa auto-exclusão e ineficaz porque lhes fecha as portas da comunicação e de toda a relação. Exaurido o homem não peca, não erra, nem prepara conflitos. É um ser genérico gerido por um Estado ex-machina, zeloso, omnipresente e intrusivo, que se vai fazendo representar por todos aqueles que atinjam o estado ritual da fiscalização dos outros, quer sejam estudantes, professores, funcionários ou polícias, quer sejam artistas, cientistas ou presidentes de institutos, quer sejam jornalistas, médicos, advogados ou governantes, quer sejam tarefeiros, viajantes ou porteiros.
A arrogância dos actuais pregadores da democracia degradada em demagogia, a sua presunção de superioridade moral e a sua acção moralista e moralizadora, conduz a um processo de instauração de sentimento de culpa, a uma nova cegueira e a uma nova forma de totalitarismo: aquele em que se supõe que o mundo está descoberto, revelado e que é um estado definitivo. É um mundo onde o perdão se obtém com a humilhação pública, dissimulada mas suficiente para o espectáculo da superficialidade, que se tornou bastante para nele existir, mesmo sem alma.
Quando se escreve, como frequentemente lemos, que o mundo está perigoso, será que é disto que se fala?, do medo de pensar que se torna aos poucos na ausência de pensamento? É uma recusa da complexidade, uma recusa da teoria, uma recusa de criar a diferença como se todos estivéssemos chegado a um ponto em que, pensar, divergir e opor-se, fosse uma forma de subversão intolerável. Não está ainda escrita a nova ortodoxia, mas vai-se fundamentando e fortalecendo através do politicamente correcto, do humor oficial, do enfado dos comentadores ao que não é maioritário nem triunfante, dos alinhamentos das televisões que pesam da mesma forma política, cultura, desporto e entretenimento, na evidência com que se proclamam lugares comuns como se fossem pensamento próprio, pela força ignara das multidões que se agregam por causas que julgam defender e compreender. Através de tudo isso, o indivíduo é acossado, marginalizado e avisado. E a realidade tornada numa ficção no vazio.

2 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Meu caro João Luís
Era por isso que os pensadores portugueses e espanhóis da segunda escolástica, defendiam que a sociedade humana resultava da realização livre e racional, não de um simples pacto, ou contrato social (que é o que há três séculos, na teoria e na prática, nos tem sido imposto), mas de um duplo pacto, ou contrato. Do primeiro, chamado pactum assotiationis, resultava a comunidade propriamente dita, no seio da qual (só no seio da qual, aliás) todos os homens são livres e iguais; do segundo, chamado pactum subjectionis, resultava a determinação de um governo, ou de um regime (necessário, por natureza, à sobrevivência e desenvolvimento dessa sociedade humana), pelo qual a sociedade se dividia em governantes e governados.
Pensar um pacto sem o outro, ou os dois num só, submetendo um ao outro, tem sido, quanto a mim, um dos grandes dramas da era moderna, razão pela qual me tenho dedicado à tradução e divulgação da doutrina destes pensadores, especialmente à de Francisco Suárez. Aí encontrarás instrumentos muito sólidos para largamente poderes pensar estas questões.
Um abraço
Gonçalo

Anónimo disse...

Esta continuação do "post" anterior, descreve ainda melhor a era feliz a que supostamente chegámos e da qual não devemos sequer pensar em sair - sob pena de excomunhão.

Obrigado ao Gonçalo P. M. pelas dicas.

Obrigado ao João-Luís por, nestas lides,
ser meu "alter-ego".

E insisto: se não viram, vejam "Sophie Scholl".

João Wemans