sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Tempo real


Chegados ao temido ano de 2009, aguardamos com expectativa um acontecimento. Todos aguardam um acontecimento. Tomado por um súbito acesso de espírito primitivo, o homem do século XXI, desocultado e crente no progresso da idade moderna, a perfeita, aqui está à espera, com nervoso miudinho, do acontecimento que resolva num ápice mágico todas as crises que invocou, que propiciou e que, se calhar no fundo mais recôndito da sua consciência, num canto mesmo fundo e sem luz, deseja.

De algum modo andou perdido pelos domínios do irrealismo, da ficção tomada por realidade e deseja, ardentemente, mas cheio de medos, o regresso à realidade. Voltar à humanidade simples, a uma ordem perceptível, a relações reais e palpáveis, à contemplação da natureza, à valorização da história que o engrandece, ao respeito (olhar) pelos outros, voltar a ouvir, demorar-se no tempo e não apenas vê-lo fugir à sua frente.

O mais provável é os dias começarem a passar como sempre passam, a vida ir-se integrando no espaço vital das nossas relações e das nossas ocupações, as coisas nem melhorarem nem piorarem, nenhum acontecimento ter uma expressão impressionante, mesmo a tomada de posse de Obama, a excitação ir refreando e, lá para o verão, já ter reaprendido a viver com as incertezas de que a vida afinal é feita, já ter reaprendido que a sociedade da segurança e das garantias depende da previdência de cada um, as empresas começarão a recuperar dos tombos e a organizarem-se com mais cuidado, melhor gestão e pés mais assentes na terra, mais poupadas as pessoas e as famílias irão olhar com mais serenidade para o que mais lhes importa e depender menos da azáfama consumista, os jovens vão sentir que o mundo não está feito e que o seu contributo não é desnecessário, etc. No final do ano, o mundo não estará tão pessimista, os sorrisos serão mais serenos e, provavelmente, ninguém se lembrará, que na noite de passagem de ano de 2008 para 2009, se vivia um surdo frenesim misto de expectativa e medo, que trouxe ao mundo sofisticado da pós modernidade os atavismos de que esse mundo se julgava já liberto.

As expectativas com que vivemos em todas as fases e momentos das nossas vidas são sempre uma relação de um ponto de partida com um ponto de chegada, ou objectivo. As crises surgem quando o ponto de partida nos foge debaixo dos pés e a nossa vida se torna insituada. A partir do momento em que identificamos a nossa situação, em que reencontramos a nossa posição, então, podemos de novo traçar o nosso caminho e estabelecer os novos objectivos. É o atraso na reconfiguração do percurso, este retardamento em identificarmo-nos com a realidade nova que desconhecemos, que nos assusta e nos faz esperar por uma magia que nos libertasse do trabalho de nos repensarmos. Aceitar as perdas, os desvios e os insucessos e recomeçar, eis o passo decisivo. Mas não é isso a vida? Não é essa a experiência incessante do viver? Tínhamo-nos esquecido, presumimos um controlo da realidade sem falhas, convencemo-nos de que tínhamos o futuro no bolso, mas enganámo-nos.
Confundimos idealismo com irrealismo e abandonámos a realidade. Agora, a força da realidade fez cair as pretensões humanas, as suas ilusões e as suas mistificações. Importa não errar, agora, na análise. Importa não entrar em novas espirais de loucura. Importa deixar os indivíduos e a sua iniciativa refazerem os seus caminhos em vez de entrarmos nas teias dos absolutismos socialistas e capitalistas naquilo que têm de idêntico, a negação do indivíduo. É preciso que a realidade entre no tempo, como um barco perdido que encontra o curso das correntes, é preciso um tempo real.

4 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Caro João Luis,
não vai ser fácil encontrar por aí textos a defender tão bem, e com tanta inteligência, a aceitação do "tempo real" através duma visão utópica, gentil e mágica como a sua.
Belo texto.

diconvergenciablog disse...

Gostei muito do texto!

Anónimo disse...

Belo texto!
Nestes tempos de Natal, em que celebrámos, ontem, a Epifanía e os Reis Magos, o padre lembrou que somos nós os povos distantes representados pelos Magos do Oriente, e que tal como eles, que se converteram ao Deus Menino, não podemos "voltar" ao futuro pelos mesmos caminhos que nos trouxeram até ao presente...

João Wemans

Sofia Rocha disse...

João Luís, este seu tempo real recordou-me o que escreveu acerca do "Caos calmo".
Mais do que qualquer crise,é a experiência da morte de alguém que amamos que nos dá a noção de relatividade de todas as coisas.
Pela simples razão que a partir desse dia conhecemos para sempre a contigência da vida e recusamos o absoluto.