sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Portugal: Reformar o Sistema Político ou Reformar a Política? (post fora de horas mas sempre a tempo...)

Houve um tempo em que o plenário dos parlamentos constituía o centro da política. Isso é visível no notável Mr. Smith Goes to Washington de Frank Capra e, em particular, nas suas cenas finais (se bem que o filme também já alertasse para a "burocratização" da política: lembrem-se da cena em que é descrita a Jimmy Stewart a forma como se elabora e aprova uma lei no Congresso americano). Em Portugal, essa identificação do plenário parlamentar com o espaço da política também é clara nalguns famosos textos de Eça.
Essa já não é a política de hoje. A componente parlamentar, representativa e deliberativa da política continua a ser fundamental mas a política já não se centra no plenário de um parlamento. Provavelmente, desde sempre que a política se fazia fora do hemiciclo parlamentar mas este constituía a manifestação pública da política: o espaço em que as diferentes concepções e propostas políticas eram publicamente apresentadas e discutidas. Hoje, a política discute-se nos jornais, na televisão e, crescentemente, na Internet. A complexidade da actividade legislativa exige, igualmente, modelos deliberativos diferentes, em que o parlamento ainda pode ter um papel importante mas de natureza diferente. O plenário parlamentar tem hoje sobretudo um carácter simbólico centrado nos grandes momentos políticos de controlo do executivo e na aprovação – mas não discussão – de legislação. Não é um espaço de deliberação mas um espaço de legitimação da deliberação que tem lugar noutras arenas do processo político: na consulta e participação públicas, na actividade governativa, nas discussões nas comissões parlamentares.
Aquilo que esperamos da política e a forma como é possível hoje em dia fazer política devem ser o ponto de partida de qualquer debate realmente produtivo sobre a política em Portugal. Recentemente, o tema voltou à ribalta, associado às faltas parlamentares, na sua forma habitual: um debate sobre a reforma do sistema político associado ao carácter proporcional ou maioritário do sistema eleitoral, à introdução de círculos uninominais ou votos de preferência etc. E, no entanto, há três outras dimensões da política em Portugal que, na minha opinião, são bem mais prioritárias.
Primeiro, a qualidade dos recursos humanos da política (a fraca qualidade de muitos dos nossos políticos e, em particular, de muitos parlamentares). Alterar isto exige um debate sobre o tipo de político que pretendemos (por ex.: profissional ou ocasional) e não ter medo de afrontar questões difíceis como o estatuto remuneratório dos políticos e o seu regime de incompatibilidades. O que me parece absurdo é continuar a ter um estatuto remuneratório pouco transparente e frequentemente penalizador para quem opta pela actividade política e compensar isso, na prática, com um regime de incompatibilidades que autoriza múltiplos conflitos de interesses e em que a remuneração dos políticos é, na prática, oculta (a perspectiva das vantagens que obtêm no mercado os que exerceram à actividade política…). Ao mesmo tempo, é inconcebível que os deputados não tenham um verdadeiro staff de apoio individual, particularmente ao nível técnico. Como podemos esperar que os deputados exerçam bem a sua actividade legislativa e de controlo político e, sobretudo, que tenham uma actividade individual autónoma dos seus grupos parlamentares sem disporem de um verdadeiro gabinete de apoio? A mudança de natureza da actividade parlamentar é perfeitamente compatível com um menor número de deputados mas, exige, por outro lado um muito maior apoio técnico e administrativo no exercício dessa actividade. Talvez fosse possível introduzir alterações deste tipo sem aumentar o orçamento do parlamento e da função política em geral: menos políticos, mais bem pagos e assessorados e com regras muito mais exigentes na prevenção de conflitos de interesses.
Em segundo lugar, temos de reconfigurar a actividade política e, em especial, a actividade parlamentar. As comissões de inquérito, por exemplo, devem ser valorizadas e facilitadas na sua criação: elas são uma das actividades parlamentares mais susceptível de mediatização e, como tal, de cumprir a função do parlamento enquanto espaço público de debate político partidário e informativo. Os deputados devem ter também um espaço físico e temporal para encontrarem os seus eleitores (não me choca que os parlamentares passem alguns dias da semana nas suas regiões de origem se se reunirem as condições para uma verdadeira actividade parlamentar descentralizada). O parlamento e o governo devem fazer um muito maior uso da Internet enquanto mecanismo de transparência e participação dos cidadãos no processo legislativo e na actividade governativa. Até agora, a Internet tem sido entendida, pelas instituições públicas, sobretudo como um instrumento para facilitar o contacto entre a administração e os cidadãos mas ainda é limitado o seu uso enquanto instrumento de participação e acesso ao processo político (já se pode aprender alguma coisa a este respeito com a União Europeia, embora também esta última possa melhorar). Devia ser possível seguir e até participar online em todo o processo de preparação e adopção de uma determinada legislação: as diferentes versões e o calendário previsto para as diferentes fases do processo legislativo; quem foi consultado; as diferentes contribuições e quem as fez; enviar propostas; registarmo-nos como cidadãos interessados em ser informados em todas as iniciativas legislativas relativas a uma certa área etc. Há imenso que podemos fazer para adaptar a actividade política aos novos tempos. Isto é indispensável para corrigir a actual assimetria entre aquilo que é a política e o que os cidadãos dela esperam e bem mais eficaz que discussões eternais sobre diferentes modelos de proporcionalidade.
Por último, não podemos ignorar que o nosso sistema político é hoje um sistema de partidos e que talvez o principal risco no nosso actual sistema político seja a "captura" dos partidos políticos. Para o melhor e para o pior o acesso ao poder faz-se hoje em Portugal através dos partidos. A nossa escolha de governo é dependente, na prática, das opções que nos oferecem os dois principais partidos portugueses. Os dois candidatos a primeiro-ministro são escolhidos, na prática, por uns poucos milhares de militantes do PSD e PS uma vez que a participação cívica nos partidos tem diminuído de forma considerável. Este contexto de reduzida militância suscita sérios riscos de "captura" dos partidos políticos e, indirectamente, do próprio poder visto que na democracia moderna os partidos políticos constituem, na prática, o filtro de acesso ao poder. Na minha opinião esta é outra questão bem mais importante a ser discutida no contexto de uma reforma política em Portugal. Será necessário repensar a própria organização democrática dos partidos (reflectindo por exemplo à possibilidade de primárias abertas ou dependendo do mero registo – mas não militância – partidário). O que é extraordinário é que não é disto que se fala, como se o sistema político se esgotasse no sistema eleitoral. Talvez seja uma causa perdida mas, como diz Jimmy Stewart, é a luta pelas causas perdidas que dá sentido à política.

6 comentários:

Manuela Magno disse...

Obrigada Miguel Maduro por comunicar de forma clara, simples e directa aquilo que muitos de nós consideram ser fundamental para a mudança na política em Portugal.

Anónimo disse...

Muito obrigado, faço minhas as palavras de Manuela Magno.

João Wemans

Manuel S. Fonseca disse...

Subscrevo o Jimmy Stewart e a visão idealista do Capra. Subscrevo as dúvidas e dilemas que decorrem da burocratização contemporânea do política. Subscrevo a necessidade de revalorizar a actividade legislativa, o que pode muito bem começar pela necessidade de melhores (e menos) políticos e de políticos muito mais bem pagos. E o que pode muito bem continuar na criação de laços directos (e não mediados) entre o eleito e o eleitor

Anónimo disse...

sem querer parecer cínico pergunto-me se quem compreende realmente este texto e as suas consequências estará interessado nele

André Miranda disse...

Embora esta excelente reflexão mereça também a minha quase integral adesão, quero apenas quebrar o unanimismo desta caixa de comentários com dois aspectos que também me chamaram a atenção.

Em primeiro lugar, a ideia de que as faltas dos deputados levaram a que ressurgisse o debate sobre a reforma do sistema eleitoral, uma das componentes fundamentais do sistema político. Não me parece ser o caso. O que aconteceu foi que este novo triste episódio das faltas parlamentares coincidiu com o lançamento e apresentação pública de um trabalho muito relevante de André Freire e outros autores sobre a reforma do sistema eleitoral através da melhoria da qualidade da representação, sem pôr em causa a representatividade parlamentar a governabilidade do País.

Em segundo lugar, a questão dos "recursos humanos da política" parece-me bem colocada nas suas várias vertentes. Concordo com a ideia de partidos políticos mais abertos e “compro” a ideia de a escolha dos líderes partidários ser aberta a cidadãos não militantes. É, no entanto, esquecido um outro aspecto que neste domínio acaba por diminuir a qualidade das bancadas parlamentares: a forma como os partidos políticos escolhem internamente os deputados que vão a votos – infelizmente, tantas vezes resultado da distribuição de lugares a troco de cumplicidades e compensações menos transparentes. Para mim, esse é um aspecto nevrálgico da reforma do sistema político e que não é muito debatido. A reforma dos partidos políticos é necessária porque é neles que assenta a representação parlamentar, porque é através deles que é assegurada a soberania da democracia representativa. E, lá está, voltamos sempre à ideia – essa sim rotineira e criticável – de que tudo se resolve com menos deputados… com menos políticos… e, por que não, com menos política? Acho que não é por aí que devemos ir.

Um abraço deste seu antigo aluno mas ainda seu leitor atento.

Miguel Poiares Maduro disse...

Obrigado a todos pelos comentários. No que concerne as críticas do André acho que não existe verdadeiro desacordo (e não digo isto para proteger o unanimismo!):
1 - Quanto ao primeiro ponto: tem razão e não pretendia dizer o contrário; o debate esteve também relacionado com o estudo do André Freire (as duas coisas coincidiram) e é isso que explica a minha referência ao facto de quase sempre o debate se esgotar no sistema eleitoral. Isto não encerra uma crítica ao André Freire que fez o que lhe foi pedido e considero um óptimo politologo. Não conheço é o estudo em detalhe mas sempre digo que a proposta de votos preferenciais me suscita algumas reservas (eu vivi em Itália onde é bem conhecido como esse sistema permitia facilmente a manipulação do voto onde as assembleias são compostas de um número relativamente pequeno de eleitores).
2 - Estamos de acordo quanto à reforma dos partidos. Já não acho é que menos deputados signifique menos política. Se há algo que eu detesto é o discurso da reforma da política que se transforma num discurso anti-política.
Isto não significa que não deva existir espaço para outros movimentos (de que a Manuela Magno, se não me engano, foi um exemplo; outro caso, é o MEP hoje). Embora me pareça que será extremamente dificil que possa aparecer algum outro movimento político significativo fora do actual quadro partidário (excepto se o PSD implodir) recuso-me a utilizar um discurso cínico e paternalista em relação a todos aqueles que de forma genuina fazem aquilo que estamos sempre a pedir a todos: intervir de forma cívica!
Miguel