La frontière de l'aube
Quem viu desaconselhou-me. Vi e aconselho. Mas aviso: se procuram entretenimento ou se têm o cérebro cheio de teorias e referências de cinema, não vão. O filme podia ser uma tese inovadora se tivesse sido realizado há 70 anos, falaria de uma forma de amor, então, actual e compreensível, mas não é. Parece invocar um tempo e uma forma que se sonhou e que se perdeu. Philippe Garrel, o realizador, continua um inalterado “soixante huitard”. Neste sentido, o filme podia ser apenas uma nostalgia. Mas Garrel mostra-nos duas visões do amor postas em contraste.
François deambula entre o autêntico e, por isso, indestrutível amor por Carole e o conformista e, por isso, também, indestrutível amor por Eve. Serão o mesmo? Apesar de terem um poder e a uma lógica que os torna indestrutíveis (talvez, até, por poderem co-existir), há um idealismo no amor por Carole que transcende a própria vontade que, estando na origem da relação, poderia turvar a clareza dos sentimentos. Entre François e Carole há uma relação que expulsa o mundo e o tempo e em que só o amor ideal é real. Não obstante se possuírem, o seu amor é alimentado de uma impossibilidade de existir dentro do tempo que marca, desde início, a sua tragédia latente até ao desenlace final: Carole tem um marido ausente, mas um marido que aparece e perturba; Carole tem amigos no meio dos quais François se torna transparente e ausente, ardendo em ciúme; François resiste-lhe e isso leva-a à loucura; abandona-a e isso leva-a ao suicídio.
O amor por Eve é o amor “burguês” pela mulher que tem as suas ocupações, os seus sonhos, a sua natureza moral, em que tudo está de acordo com o tempo e com o mundo. Pode ser, também, uma promessa de felicidade: Eve fica grávida; François houve os conselhos dos amigos (tem amigos); dá a Eve o melhor presente que é pedi-la em casamento; promete-lhe o seu amor; dorme ao lado dela numa rotina sem sobressaltos.
Mas é das rotinas (vida burguesa, apática, conformista para Philippe Garrel) que se erguem os fantasmas. Não só os do desejo, mas também o da revolução (nada mais apropriado para a democracia pastosa e apática na Europa de hoje). As rotinas de Eve não lhe trazem, afinal, o sossego. François tinha conhecido outro amor, o amor que se alimenta, quase o podemos dizer, da sua ausência, porque o seu idealismo obriga a esvaziar a alma para se inundar plenamente. Daí a imagem dos limpa pára-brisas dada por um dos amigos para exprimir a relação dos amantes: quando um se aproxima o outro afasta-se e vice-versa. Uma espécie de dança da morte, uma sedução lenta, um jogo de escondidas.
Depois do seu suicídio, Carole aparece a François no espelho e chama-o para junto dela. Pede-lhe, no fundo, que se suicide para se lhe juntar. Carole chama-o... ou, ele quer ir ter com ela e invoca-a. Ela chama-o de fora do mundo e do tempo... ou, ele deseja encontrar-se com ela fora do mundo onde ela já não está e fora do tempo onde ela já não vive. O desenlace é trágico porque não tem solução no mundo e no tempo. A solução é morrer para renascer.
A extraordinária fotografia do filme conduz-nos à primeira de duas considerações finais. A narrativa não é um movimento em que as personagens se vão revelando. As personagens de algum modo são aquilo que o autor quer que elas sejam e, por isso, as sequências — os estados, os progressos e os conflitos —são abruptamente introduzidas. Neste estilo há um dramatismo expressionista, em que, ao contrário do teatro ou do romance, as personagens são uma criação directa do autor e não uma necessidade da própria natureza ou razão da narrativa. As personagens não se autonomizam do autor. No cinema, esta forma moderna de criação artística, encontra uma facilidade muito evidente. Há no cinema uma intenção teórica, que sobrepõe a tese à sensação. A unidade estética vem por via do elemento sensível construído pela fotografia de William Lubtchansky. É uma imagem de outro tempo, a preto e branco em que o branco, por vezes, se expande na fita até quase à indistinção das formas. Invocando o cinema dos anos 20/30 o autor transporta-nos para um tempo perdido e misterioso, para nos falar do amor que hoje seria impossível.
A segunda consideração é sobre o amor. A ideia do amor não como um encontro de interesses, como ele se ilude no modelo “burguês”, mas como amor trágico em que o mundo é apenas um lugar de encontro para chegar a outras paragens. Aqui o amor torna-se num manifesto irmão da revolução. Contra o conformismo, o adormecimento e a exaustão do espírito. Aqui o público em geral ri-se. O riso é o medo da morte. É, pois, natural que ria. Riu em Cannes e até apupou. O amor trágico é associado a uma época que passou. O amor hoje em dia anda arredado do mundo. O amor e as causas. Nada turva a pacata apatia em que vegetamos. Mas se bem pensarmos o que procuramos no mais profundamente celeste das nossas cavernas individuais, é o amor que não conhece limite, que não pode estar no que se corrompe e, por isso, não se realiza no mundo e no tempo. Por isso o amor é secreto. Para se proteger. A razão de haver transcende-nos. O amor é sempre transcendente ainda que nos surja como uma porta que por acaso se abriu neste tempo e neste mundo em que vivemos. Quantos estaremos dispostos para a viagem que nos propõe?
2 comentários:
Caro João-Luís,
Mais uma vez foi um prazer ler-te.
"O amor é sempre transcendente ainda que nos surja como uma porta que por acaso se abriu neste tempo e neste mundo em que vivemos."
- Eu diria que para ser Amor não é por acaso; tem de haver um sentido e um propósito a descobrir.
Será essa a via para a transcendência?
João Wemans
A ideia de uma Eva, afinal burguesa, é engraçada.
Apenas acho que há mais sobre as rotinas e moral de uma burguesa do que parece, como bem adivinhou Bunuel.
João Luís, quem nos garante que a nossa Eva não passa o tempo a navegar na net e em chats, procurando aventura,enquanto o marido sonha com uma morta?
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