quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Da Visão: A América não mudou

Varridos os confetis, enxugadas as lágrimas, apagadas as luzes e recolhidas as canas, permitam-me uma reflexão mais ponderada sobre os resultados das recentes eleições americanas. Apesar do aparente unanimismo que por aí ferve, acredito que há algo de profundamente paradoxal na vitória de Barack Obama: o facto de ela poder ser entusiástica e genuinamente festejada na Europa por razões muito diferentes, senão mesmo antagónicas.
Muitos Europeus vêem nela, de facto, a mudança que ardentemente desejavam para a América. Festejam, acima de tudo, o fim da era Bush, o fim do unilateralismo americano, a derrocada dos neo-cons e a derrota desse papão estranho que nunca ninguém se dá ao trabalho de definir e que dá pelo aterrador nome de neo-liberalismo. «A América mudou», «nunca mais será a mesma», repetem, com o indisfarçável alívio de quem exorciza um fantasma ainda demasiado real. No fundo, no fundo, gostam de acreditar que o tempo lhes deu razão e que a América se aproximou agora do auto-santificado modelo europeu.
Eu, que tenho a pretensão de não poder ser confundido com um «obamista» de última hora, deito os foguetes por razões muito diferentes. Festejo, imagine-se, porque a América não mudou. Porque, no essencial, provou que se mantém fiel à matriz ideológica dos seus «founding fathers». Festejo a vitória de um «american dream» que não é senão a vitória de uma fé inabalável e centenária na igualdade de oportunidades. Festejo o sentido de justiça de uma sociedade que honra a sua Declaração de Independência («all men are created equal») e em que, de facto, é cada vez menos relevante nascer-se branco ou negro, homem ou mulher, pobre ou privilegiado. Festejo a plasticidade do seu tecido social e a meritocracia que é a sua marca mais profunda. Festejo, em suma, o Liberalismo. Que é, gostemos ou não da ideia, seja este ou não o tempo para o afirmar, o principal fundamento da cidadania americana.
E porque os motivos do meu festejo são claramente diferentes dos da maioria, não alimento ilusões. Na eleição de Barack Obama não vejo uma suposta aproximação da América aos beatificados valores europeus. Vejo, muito pelo contrário, claramente marcadas, as abissais diferenças entre dois modelos sociais e políticos. E se ganho alento para acreditar que um dia podemos também vir a sonhar com uma sociedade menos rígida, menos conservadora, menos imobilista, sei bem que a hipócrita «excepcionalidade europeia» se alimenta ainda muito de preconceitos raciais e sociais, de profundo desprezo pelo mérito, de dramáticas desigualdades de oportunidade. Ou será que, em consciência, alguém acredita que, apesar de todas as declarações balofas em sentido contrário, podemos ter, nos tempos mais próximos, um negro na chefia do Estado ou na presidência do governo em Lisboa, Londres, Paris ou Berlim?
Será, com toda a certeza, muitíssimo útil festejar a queda de George W. Bush. É absolutamente higiénico que se festeje a condenação de Guantanamo e de Abu Ghraib. Mas não seria seguramente menos proveitoso que aproveitássemos este momento histórico para realizar o quanto temos ainda para aprender com a América.

3 comentários:

Sofia Rocha disse...

Pedro, começa logo por saber o que se entende por esquerda ou direita nos EUA.
Nos EUA, eu seria considerada uma esquerdista, que foi sempre o que me chamaram sempre os amigos americanos.
Mais, vejam-se as leis laborais do partido democrático. A lei laboral defendida pelos democratas nos EUA seria capaz de fazer corar um CDS-PP em Portugal.

Anónimo disse...

Mudou sim senhor. Porque já tinha começado a mudar, e porque ainda é preciso mudar mais um pouco, para impedir uma mudança maior.
eduardo lapa

Anónimo disse...

Para ilustrar este post deixo aqui o link do recentíssimo blog de Pedro Ribeiro Ferreira que se rendeu a estas publicações oferecendo-nos o seu excelente trabalho.

http://www.pedroribeiroferreira.blogspot.com/

Abraço!