sábado, 4 de outubro de 2008

O Nosso Mundo


Caro Manuel, Respondo-lhe agora ao difícil desafio que me pôs aqui, mais por amizade estou em crer, e devido ao meu inqualificável absentismo no Geração de 60, do que propriamente por esperar que eu consiga deslindar esta encruzilhada contemporânea em que nos encontramos.

Recordo o texto que então propôs:

"Our society seems to be locked into a position in which the user’s and voter’s choices determine how we shall live in the future. A disturbing collective urban life in a giant Big Brother House looms, a material and social world in which sensationalistic media and its commercial translation dominate.
Our sense of what is real and what is quality is on the verge of collapse. The practice and education of the engineers of this society is determined by short-term effect instead of long-term social responsibility. Culture becomes little more than a market, politics its façade and the city its stage.
Instead of reviving old school high modernist social engineering or claiming the need for an intellectual junta, we solicit new forms of social engineering. Where shall this lead?
"


Tudo isto é uma situação em que o domínio da quantidade tomou o passo do domínio da qualidade. É o resultado do industrialismo que era uma promessa, do historicismo marxista que se tornou na única versão da história, do racionalismo auto-suficiente que iluminou o pensamento filosófico, etc. Agora é difícil inverter as mentalidades, repor a ordem e a justiça e dar realidade ao mundo.

Não queremos política de fachada? Mas como é que se conquistam os votos anónimos que legitimam o poder e o plebiscitam nas urnas? Não queremos literatura ordinária? Mas como é que se criam best-sellers com obras de qualidade literária a que poucos continuam a ter acesso e interesse? Não queremos televisões rascas? Mas como é que se entretêm as massas sem o sentimentalismo vazio ou alienação que lhes preenche o vazio de que nem sequer têm consciência?

A pergunta que temos de fazer é: quem andamos nós, todos, a saciar? E se soubermos a resposta perguntemo-nos de novo: como conseguiremos nós derrubá-los e expulsá-los do seu quartel? Aquilo de que todos nos apercebemos é que as promessas da modernidade falharam e o mundo moderno que destruiu o mundo tradicional não tem um objectivo que una as pessoas. Percebemos, agora, que o que eram erros no mundo antes da modernidade não careciam da modernidade para serem corrigidos, teriam que corresponder a uma renovação de dentro e não a uma tábua rasa que anunciasse que tudo era novo a partir de então. Esta presunção iluminada, diria até, arrogância provinciana de que se participa de uma nova era construída sobre os escombros de outros tempos, é a fonte de todos os insucessos em que vamos esbarrando até ao non sense final.

O domínio da quantidade é isto, todos iguais, todos básicos, todos cordeiros. Não sei se haverá algo de bom. E não sei se há algo que se possa fazer. A energia vital vai-se esvaindo lentamente. Um mundo governado por emoções de massas, por comícios e por futebol, por prémios Nobel e por prime times, por chantagens plutocráticas e por chantagens estatais, um mundo governado por realidades virtuais, por políticos a prazo que serão consultores ou CEOs na reforma, por promiscuidades entre os poderes executivo, legislativo e judicial, por ineficiências na educação e na justiça, um mundo reduzido a viver em socialismo ou em capitalismo onde, sobretudo, é negado o direito a uma individualidade feita de singularidade e diferença.

São agora os indivíduos que, ainda sem rejeitarem o mundo moderno vêm procurar a conciliação entre a sua evidente necessidade de individualismo e um discurso do tempo que em tudo lhe a nega.

Na arquitectura e no urbanismo este problema põe-se com maior evidência. Perguntam-se uns, como é possível uma licenciatura intervir num património comum como é a cidade, a história, o modo de vida das pessoas, etc.? Mas não o dizem por causa de uma fachada que ficou menos harmoniosa, dizem-no porque observam a ausência de um valor comum que dê unidade e sentido à arquitectura e ao urbanismo e que esse valor comum traduza uma identidade com o património de uma comunidade. Porém, a arquitectura e o urbanismo apenas constroem as formas e os significados que existem já, mais discreta ou mais patentemente, na vida comum dos povos. O que não vemos claramente na cultura e que até podemos dispensar do nosso convívio mais imediato, torna-se opressivo na arquitectura e no urbanismo. Todas as tendências, movimentos e escolas, que existem na cultura em geral, seja na música seja na pintura ou no teatro e na literatura podem ser ignoradas, combatidas ou assumidas e defendidas, mas na arquitectura elas são construídas e todos de alguma forma são chamados, na sua vida quotidiana, a participar nela, quando se vai ao teatro, quando se vai a uma repartição pública, quando se vai a uma escola ou quando, simplesmente, se passeia por uma rua. Aquilo que era, num determinado plano, uma tendência cultural, um movimento ou uma escola, torna-se na expressão e no retrato do nosso mundo. E quando não gostamos desse retrato estamos implicitamente a concluir que a cultura sem uma matriz concreta na existência das comunidades é uma agressão a cada um dos indivíduos dessa comunidade e não é motor de aperfeiçoamento, por não corresponder a uma forma de convívio entre diferentes onde tem de haver sempre a expressão do que liga e não um incessante combate pelo que separa.

Há falta dos valores que ligam, há falta de reconhecimento de uma substância comum, resta-nos o respeito pela história e resta-nos interpretar os princípios que intemporalmente estão na base da nossa cultura. Só assim talvez consigamos encontrar um património comum e recomecemos a pensar no valor e no sentido das expectativas que individualmente temos naquilo que nos é comum aos outros. Só assim, não transformaremos o mundo num laboratório de ensaios onde não se procura um saber autêntico mas apenas exibir-se uma personalidades. Tem a arquitectura esta missão por ser através dela evidente o que em discussões estéreis de intelectuais raciocinantes não chega, tantas vezes, a ser perceptível, mas todos esses são tão responsáveis pelo retrato que na arquitectura e no urbanismo se vê como os arquitectos e os urbanistas.

2 comentários:

Sofia Rocha disse...

João Luís,sentia a sua falta.
Este post tem alguma coisa a ver com um certo espelho?

Manuel S. Fonseca disse...

João, que tenha aceite o desafio bastaria para lhe agradecer. A resposta, extraordinária e tão lúcida, monta um puzzle cujo pessimismo, embora expectável, me surpreende pela dimensão, rigor e coerência. Não me quero deixar esmagar por tanta descrença. Vou ler três ou quatro vezes e ver se lhe consigo dizer qualquer coisa que valha a pena.